terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

UMA DEFESA DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA

 


INTRODUÇÃO

J

á faz alguns anos que venho percebendo em acadêmicos de Teologia um sentimento que também é comum a professores de Teologia: ojeriza pela Teologia Sistemática. “Prefiro a Teologia Bíblica à Teologia Sistemática”, alegam alguns. Lembro-me de ter conversado com um colega que, em tom de desdém, disse que havia desfeito de todas as suas Teologias Sistemáticas.

O entendimento de pessoas que assumem essa rejeição pela Teologia Sistemática, por vezes, é de que a Teologia Bíblica é menos dogmática e possibilita um trabalho “direto” com o texto bíblico sem a interferência da Dogmática Cristã ou, noutras palavras, sem a interferência dos teólogos sistemáticos. Preterem assim a Teologia Sistemática optando pela Teologia Bíblica. Alguns fatores, contudo, precisam ser seriamente considerados antes de “dispensarmos” a Teologia Sistemática (ainda que eu nunca estive realmente disposto a isto). Vejamos a seguir.

 

1. O OLHAR HERMENÊUTICO É INEVITÁVEL

Por mais que se pressuponha que dialogando com a Teologia Bíblica, estará o acadêmico de Teologia trilhando um caminho mais “neutro”, isento, desprovido de “amarras dogmáticas”, o fato é que isentar-se já significa sair da neutralidade. Ser neutro representa uma forma de posicionamento!

Penso que o dogma é uma forma de posicionamento, reflete cosmovisão e a maneira como reagimos a determinados temas. Não posicionar-se é praticamente impossível. Melhor, portanto, é assumir que todos temos dogmas e que olhamos o mundo por determinada perspectiva.

O que a Igreja vem fazendo é justamente isto, ao longo de séculos, por meio de sua sistematização teológica. O que o homem pós-moderno não consegue entender é que ao insistir em que não há um absoluto, ele já está sendo absoluto. Fica claro que esta rejeição ao dogma cristão tem como pano de fundo, na verdade, o típico relativismo pós-moderno. Sob o manto de isenção, e/ou de “neutralidade científica”, o estudante da Bíblia, desde o exegeta ao leitor popular da Bíblia, todos, sem exceção, se aproximam da Bíblia já com algum sistema interpretativo preconcebido. Suas vivências pessoais, comunitárias, sua religião, suas crenças, enfim, irão incidir sobre sua interpretação do texto bíblico. A eisegese[1] é um fenômeno, de certo modo, inevitável. Pode e deve ser reduzido, mas nunca poderemos dizer que chegamos de fato ao texto bíblico completamente “despidos”. Isto é ilusão.

 

2. O VALOR PROLEGÔMENO DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA

O conhecimento não vem pronto; se dá por estágios. Vai sendo construído ao longo dos anos. É uma tolice ignorar o valor do conhecimento elementar pelo fato de termos alcançado conhecimento mais complexo. Conhecimento complexo vai sendo obtido à partir de conhecimento elementar.

O estudo de Teologias Sistemáticas contribui assim para introduzir o cristão no amplo campo de estudos da Teologia. É a melhor via para que ele conheça as crenças que orientam a vida da Igreja, vida da qual ele próprio participa e no interior da qual, sua existência adquire significado.

São essas convicções dogmáticas que norteiam a maneira como reagimos ao mundo que nos cerca e a maneira como encaramos Deus e nos relacionamos com Ele. Perguntas cruciais para o cristão são respondidas na Teologia Sistemática: Quem sou eu? Quem é Jesus? O que é a salvação? Qual a relação da Queda comigo? O que é santidade? Estas e outras tantas questões são definidoras da nossa identidade e de como nos orientamos ética e solidariamente no mundo. De certo modo, o homem está sempre em busca de respostas para estas questões. Se não for na Teologia Sistemática, ele vai buscar em outra fonte, como de fato faz. Por que não pode, pois, a Dogmática Cristã permanecer como uma resposta não só possível, mas viável? O que subjaz de fato nessa rejeição: neutralidade científica ou preconceito?

 

3. A INEVITÁVEL SISTEMATIZAÇÃO DE OUTROS SISTEMAS

Sistematização de convicções e pontos de entendimento não é algo exclusivo da Teologia Sistemática. A sistematização está presente, inclusive, em outros ramos do saber. E não só em Ciências Humanas, mas também outras ciências como Matemática e Física. Sistematizar é organizar e este é um aspecto essencial para o progresso do conhecimento humano, inclusive.

O teólogo sistemático Wayne Grudem comenta: “[Teologia Sistemática] significa examinar a Bíblia para encontrar todos os versículos que correspondem a um determinado tópico de estudo. Então, juntamos todos os versículos para entender o que Deus quer que creiamos. “Sistemática” significa “[...] cuidadosamente organizada por tópicos.” Então, é diferente da teologia aleatória ou da teologia desorganizada”.[2] A Teologia Sistemática não pode ser desprezada pelo fato de ser sistemática. Sua organização tem razão de ser e mesmo no próprio texto bíblico já percebemos doutrinas sistematizadas, organizadas para formar um pensamento específico.[3]

 

4. O VALOR HISTÓRICO DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Aqui está também outro importante fator para se ler e estudar Teologia Sistemática. Vários teólogos vem escrevendo e deixando para a posteridade diversas teologias sistemáticas, isto ao longo de séculos. Aquino, Calvino, Armínio, dentre tantos outros escreveram volumosas obras que refletem a convicção da Igreja ao longo de séculos.

Seu pensamento e reflexões em torno de Deus, do mundo, do próprio homem e sua condição, enfim, diversos temas atrelados ao Cristianismo e à vida vem sendo seriamente investigados e abordados em teologias sistemáticas. Neste sentido, essas obras podem ser consideradas verdadeiros repositórios de sabedoria antiga e de conhecimento histórico também a respeito da Igreja, do próprio homem e das Escrituras. Como alguém que trabalhou em um projeto historiográfico, este é um ponto que me soa como muito importante e que merece ser destacado.

 

CONCLUSÃO

Neste artigo poderiam ter sido destacados ainda outros pontos importantes que justificam a Teologia Sistemática, bem como realçam seu valor para a Igreja.[4] Julgo, contudo, que os que aqui foram comentados são suficientes para uma reflexão desta natureza. Espero, realmente, ter contribuído para o leitor ou leitora.[5]



[1] Confira o subtópico 3.2 do artigo Educação Cristã e Leitura Popular da Bíblia: propondo mediações hermenêuticas, onde defino o que é eisegese.

[2] GRUDEM, Wayne. O que é a Teologia Sistemática e porque se importar com ela. Disponível em: <https://www.thegospelcoalition.org/pt/article/o-que-e-a-teologia-sistematica-e-porque-se-importar-com-ela/> Acesso em 17 jun. 2018.

[3] Naturalmente, não ao modo da Teologia Sistemática que, enquanto ciência, é recente. Mas é possível notar na coerência dos argumentos paulinos, em Romanos, para citar um exemplo, que houve sistematização de ideias e crenças. Noutras palavras, o próprio texto bíblico pressupõe organização, sistematização e coerência de crenças.

[4] Como por exemplo, o caráter apologético da Teologia Sistemática; também a sua contribuição no que tange à sua abordagem descritiva das doutrinas do Cristianismo e ainda, sua contribuição para a fenomenologia da religião, visto que ela preserva os traços da religiosidade cristã ao longo de muitas gerações.

[5] COZZER, Roney Ricardo. Em defesa da Teologia Sistemática. Disponível em: < www.facebook.com/roneyricardo.cozzer/posts/2087103307998126> Acesso em: 17 jun. 2018.


Por Roney Ricardo Cozzer


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