sábado, 13 de junho de 2020

A VIDA CONJUGAL COMO CONSTRUÇÃO CONTÍNUA (ESBOÇO DE PALESTRA)


TEXTO BÍBLICO: “Sujeitem-se uns aos outros por temor a Cristo. Esposas, sujeite-se cada uma a seu marido, como ao Senhor. [...] Maridos, ame cada um a sua esposa, como Cristo amou a igreja. Ele entregou a vida por ela, a fim de torná-la santa, purificando-a ao lavá-la com água por meio da palavra” (Ef 5.21,22,25,26).[1]

INTRODUÇÃO
O tema família é muito caro para a Igreja. A família é uma instituição divina, o que a coloca como digna de especial atenção.[2] Diversas são as passagens que falam sobre assuntos e personagens de modo direto ou indireto relacionados à família. Nos dois primeiros capítulos de Gênesis encontramos as narrativas sobre a criação do primeiro casal. Os capítulos 12 a 50 tratam das vidas dos patriarcas dos antigos hebreus, Abraão, Isaque, Jacó e José, sempre relacionados aos seus respectivos contextos familiares, ainda que em contextos culturais bem distintos do nosso. Chegando ao Novo Testamento, num cenário sócio-cultural muito diferente daquele do Antigo Testamento, o tema “família” continua tendo lugar de importância no pensamento e na reflexão teológica cristã. Textos como este de Efésios 5, usado para embasar este esboço, são recorrentes nas epístolas e também nos Evangelhos encontramos alusões à família.[3] Chegando ao século 21, perguntamos: Goza o casamento e a família por extensão dessa importância e valorização?

1. CASAMENTO: UMA INSTITUIÇÃO AINDA VIÁVEL?
O número de divórcios no Brasil e no mundo é realmente muito expressivo. Infelizmente é grande o número de casamentos que vão a pique, e muitos acabam nos primeiros anos e até nos primeiros meses. E vale destacar também que a saúde dos casais dá sinais de problemas graves. Diante de todos esses desafios, é grande o número de pessoas que já não acreditam mais no casamento (inclusive muitos que casados estão) e o encaram até como uma instituição obsoleta. Refletir sobre isto, contudo, é necessário, sobretudo, à luz das Escrituras.
Essa incerteza em torno do casamento é, em grande medida, resultado da assimilação da cultura pós-moderna pautada pelo hedonismo e utilitarismo. Nos tópicos a seguir refletimos justamente sobre os elementos que são fundamentais para a construção e manutenção da vida conjugal que, quando entendidos e praticados, levam a uma vida a dois mais equilibrada e feliz. E o primeiro consiste justamente em refletir sobre se entendemos corretamente o que é o casamento e o seu real significado. Isto é fundamental num mundo de utopias frustradas e de estereótipos construídos socialmente que são inalcansáveis.

1.1 Entendemos corretamente o casamento?
O primeiro passo para um casamento saudável é entender seu real significado. Muitas pessoas se casam com motivações equivocadas e sem ter em mente o que devem esperar realmente da vida a dois. Neste sentido, não é incorreto afirmar que em muitos casos, o casamento começa a ruir mesmo antes de ter sido oficializado diante de um ministro do evangelho.
A vida conjugal tem algumas implicações fundamentais que devem ser do conhecimento de ambas as partes, antes mesmo de chegarem ao "Sim". Homem e mulher, cônscios de seu papel e de suas responsabilidades, haverão de usufruir juntos das benesses e alegrias de uma vida a dois e poderão juntos construir um projeto que seja, de fato, para a vida a dois, “até que a morte os separe”.

1.2 Implicações da vida a dois
A escolha pela vida conjugal naturalmente gera responsabilidades que devem ser assumidas tanto pelo homem como pela mulher, numa ação colaborativa. Infelizmente, muitos casais assumem uma postura combativa e competitiva ao invés de se “abraçarem” para juntos construírem um lar feliz. Por mais paradoxal que isso pareça, tem sido a realidade de muitos casais.

    1.2.1 Prestação de contas
A vida a dois requer prestação de contas, do homem para com sua esposa e da mulher para com seu esposo. Isto não deve ser confundido, é claro, com controle obsessivo, doentio, paranoico, que desgasta e fragiliza a relação a dois. Longe disso, a prestação de contas no casamento pode ser encarada como uma verdadeira bênção. Uma vida não “fiscalizada” está fadada a seguidos fracassos. A prestação de contas, isto é, o feedback constante entre o casal, é fundamental para que juntos possam fazer as melhores escolhas e traçar as melhores linhas de ação.

    1.2.2 Respeito à individualidade do outro
Há pessoas que entendem casamento como “prisão”, e de fato muitos casais vivem como que prisioneiros um do outro. Todavia, tanto o homem como a mulher devem entender que a pessoa com quem se casou possui uma identidade própria, é detentora de uma individualidade e isso deve ser seriamente respeitado. Viver casado é também aprender a conviver com aquilo que não é “o meu gosto" e "a minha preferência”. Ilude-se quem pensa que casamento é resultado apenas de preferências em comum. Naturalmente, a vida a dois agrega crenças e valores comuns, escolhas e projetos compartilhados, dentre outros elementos comuns a ambos os cônjuges. Mas isto não anula o fato de que divergências e distinções de personalidade e temperamento são uma realidade no casamento, realidade esta que será fortemente sentida pelos dois.

2. PRÁTICAS PARA TORNAR SÓLIDA A UNIÃO CONJUGAL
A vida conjugal requer disciplina. É preciso cultivar um conjunto de práticas que contribuem para a manutenção do casamento. Práticas que vão sendo exercitadas e melhoradas e que aos poucos vão se tornando hábitos. Neste sentido, é correto afirmar que tal esforço constitui um exercício para a vida toda. E não deve o leitor se admirar disto, visto que nós não somos seres prontos, totalmente prontos, acabados. Na verdade, precisamos reconhecer que nossa necessidade de aprendizado é constante. E que práticas são essas que contribuem para nos ajudar a crescer como pessoas e assim consolidar o casamento?

2.1 Conhecer a si mesmo
Parece que aqui estamos pisando no campo da obviedade, mas não se engane: Conhecer a si mesmo pode representar um grande esforço pessoal! Disciplinas como a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e outras se debruçam, cada uma ao seu modo, sobre este tema. A pergunta “Quem sou eu?” assume um caráter não só teológico, mas ontológico-existencial e de algum modo, todos nós a articulamos em algum momento de nossa vida.

    2.1.1 O conhecimento de si mesmo passa pela vida devocional equilibradasadia e profunda
As horas que passamos a sós com o Senhor servem não apenas ao nosso enriquecimento espiritual, mas o fato de silenciarmos nossa agenda concorrida para estar à parte com Ele, permite que ouçamos a voz do Espírito Santo nos reorientando em muitas questões de nossas vidas.

    2.1.2 O conhecimento de si também passa pelo conhecimento do outronum ir e vir constante
Aprendemos pela observação e assimilação do que vemos em outras pessoas, para bem e para mal. Podemos ver o que é mau e nos afastar dele ou nos aproximar, e isto dependerá de nossa escolha. Ao decidir nos afastar, naturalmente estamos já num processo de aprendizagem e assimilação positiva. Outro ponto a ser destacado é que esse conhecimento de si mesmo deve muito aos feedbacks que recebemos do outro. Assim, o nosso conhecimento sobre nós mesmos é devedor, em grande medida, à colaboração de outros. A Janela de Johari traz importante contribuição nesse sentido.[4]

2.2 Conhecer o outro
Conhecer o outro implica uma construção constante. Requer paciência, tolerância e sobretudo, amor. Implica capacidade de aceitar a pessoa como ela é, e não como nós queremos que ela seja. É preciso haver assim alteridade, e alteridade se constrói com solidariedade. O egoísmo, naturalmente, haverá de entravar esse processo. Há pessoas ensimesmadas, que se colocam como se não precisassem de mais ninguém e acabam assim assumindo uma postura de grande arrogância. Conhecer o outro requer respeito à ele ou à ela, pois significa entrar em seu universo particular de certo modo.

2.3 Conhecer os temperamentos
Conhecer os temperamentos auxilia muito no sentido de humanizar nossas relações.[5] É que por vezes avaliamos algumas características de temperamento de maneira reducionista e até mesmo preconceituosa. No contexto religioso isto é muito forte. Traços de temperamento muitas vezes são associados a espiritualidade das pessoas e fazemos leituras sobre elas à partir disso, leituras equivocadas que podem gerar estigmas e até mesmo feridas emocionais. A fim de exemplificar isto, podemos considerar o fato de que pessoas que são menos expressivas emocionalmente, por vezes são vistas como apáticas espiritualmente, e por vezes sua espiritualidade sofre questionamentos. Outro exemplo interessante está relacionado à melancolia, de modo que pessoas que tem esse temperamento predominante tendem a ser vistas sempre de modo negativo, como se nada de bom existisse nesse tipo específico de temperamento. Cito estes exemplos a fim de demonstrar a importância de se conhecer bem os temperamentos.
No casamento, o saber lidar com o temperamento do outro é crucial para a saúde da relação. Vale lembrar a esta altura que o temperamento vem conosco, em nosso nascimento, mas como muitas coisas em nossa vida, ele pode ser melhorado. Depende de nós. O temperamento muitas vezes é usado para legitimar grosserias, agressões, gritos, atitudes de desrespeito e outros arroubos emocionais. Mas isto constitui um erro grave. O temperamento pode ser melhorado.
A esta altura de nossa reflexão, cumpre fazer as seguintes perguntas: Você conhece as características do seu temperamento? Você sabe como identificar o seu próprio temperamento? Você conhece qual é o temperamento predominante do seu cônjuge? Apresentaremos a seguir algumas características dos temperamentos que permitirão essa identificação e, em seguida, modificar comportamentos, melhorar tratamentos e abandonar determinados vícios comportamentais em relação ao outro. Isto significa, na prática, crescer como pessoa!
O temperamento pode ser definido como sendo “[...] a tendência predominante de humor da pessoa, suas reações e grau de sensibilidade do indivíduo. Temperamento vem da palavra “tempero”, forma pelo qual expressa o jeito peculiar de cada pessoa”.[6] Tim LaHaye comenta que foi Hipócrates, médico e filósofo grego, que expôs 400 anos antes de Cristo, a teoria de que existem quatro temperamentos básicos, a saber: sanguíneo, colérico, melancólico e fleumático. Mesmo que existam outras classificações, a de Hipócrates resistiu ao tempo e é amplamente conhecida e utilizada.[7] A seguir estão descritos de modo muito breve os quatro temperamentos.

    2.3.1 Colérico
Também chamado de “colérico intransigente”, é um temperamento vivo, dinâmico, irritadiço e por vezes, “pavio  curto”. LaHaye comenta que o colérico “[...] muitas vezes é autossuficiente, e muito independente. Sua tendência é ser decidido e teimoso, tendo facilidade em tomar decisões para si mesmo assim como para outras pessoas”.[8] Geralmente é insensível e gosta de tudo para ontem... Mas suas qualidades quando bem exploradas muito podem contribuir num projeto coletivo, por exemplo. No casamento, o cônjuge colérico pode assumir uma postura motivadora, impulsionadora, animadora.

    2.3.2 Sanguíneo
LaHaye comenta que o “[...] temperamento sanguíneo é cordial, eufórico, vigoroso e ‘folgazão’”.[9] Para o sanguíneo, os sentimentos tem um peso enorme em suas ações, mais que os pensamentos ponderados. Uma marca do sanguíneo é sua cordialidade e diferentemente do colérico, ele não é tão insensível aos sentimentos alheios. Faz muitos amigos e no trabalho, conquanto seja enérgico, por vezes não conclui o que começou.

    2.3.3 Melancólico
LaHaye comenta que o melancólico “[...] é comumente classificado como o temperamento ‘hostil e sombrio’”. A despeito dessa designação nada honrosa, LaHaye afirma que o melancólico “na realidade, é o mais rico de todos os temperamentos, pois é um tipo analítico, abnegado, bem dotado e perfeccionista. Ninguém desfruta maior prazer com as belas artes do que o melancólico”.[10] Mas este temperamento, como todos os outros, possui também seus defeitos. Tende a ser vingativo, demora a superar conflitos interpessoais e diferentemente do temperamento sanguíneo, não faz amigos com tanta facilidade. No casamento, o cônjuge precisa saber lidar com as ciclotomias do parceiro melancólico, e o cônjuge melancólico deve buscar reconhecer suas nuances de humor e procurar minimizar os impactos disto sobre os outros membros da família, especialmente sobre o parceiro ou parceira.

    2.3.4 Fleumático
Tende a ser equilibrado, calculista, coerente, frio e para ele, a vida “[...] é uma experiência feliz, serena e agradável na qual tenta envolver-se o mínimo possível”.[11] Em posições de gestão e liderança, o fleumático tende a ser muito produtivo e bem sucedido. No casamento, é importante que ele trabalhe suas emoções e sua postura, pois ele tende a mais sentir as emoções do que a demonstrá-las, o que pode ser ruim para a relação. Essa frieza típica do fleumático, boa em alguns contextos, pode ser devastadora para suas relações pessoais.

CONCLUSÃO
Naturalmente, muito mais poderia ser dito aqui a respeito da vida a dois, do casamento, mormente na perspectiva bíblica. Buscou-se um diálogo com outras fontes de conhecimento a fim de se produzir um texto que apresente assim contribuições possíveis, mas partindo da compreensão básica de que o casamento continua sendo uma instituição vital à sociedade, à constituição de famílias saudáveis e também para a construção de igrejas sadias.




[1] Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016, Efésios 5.21,22,25,26.
[2] Devemos lembrar também que a família é tema importante em Sociologia, disciplina que a reconhece como uma instituição de base, isto é, que está na base da constituição social.
[3]  No Novo Testamento, temos Jesus entrando na casa de algumas pessoas como em Lucas 19.1-10, Paulo escrevendo sobre a relação entre pais e filhos em Efésios 6.1-4 e o encontramos ainda fazendo referência a famílias, como em Romanos 16.10,11; também o autor da Epístola aos Hebreus adverte contra o adultério e exalta o matrimônio em 13.4.
[4] A Janela de Johari é um conceito desenvolvido por dois psicólogos na década de 1950, chamados Joseph Luft e Harry Ingham. A palavra “Johari” é a junção das iniciais dos primeiros nomes dos dois. A palavra “janela” é um ponto de comparação com as janelas de casas em que há divisões onde se encaixam os vidros, e no conceito refere-se à áreas do comportamento humano, percebidos e não percebidos pelo próprio sujeito. A Janela de Johari é pensada em relação ao comportamento do indivíduo e de grupos e, por isto mesmo, muito utilizada no contexto corporativo e nas reflexões sobre Liderança. A Janela de Johari define quatro áreas do comportamento a serem consideradas: a área aberta, a área fechada ou secreta, a área cega e a área desconhecida. Na área aberta estão aqueles comportamentos conhecidos pela própria pessoa e por outras que a cercam. Na área fechada estão aqueles comportamentos que o indivíduo ve em si mesmo mas oculta dos outros. Na área cega estão aqueles que não são percebidos pelo próprio indivíduo, mas que são notados pelas outras pessoas que o cercam. Na área desconhecida residem aquelas características e fatores que nem o sujeito e nem as pessoas que o cercam percebem. Quando o sujeito se abre ao feedback em um desses quadrantes, outros são afetados. Por exemplo, quando a pessoa se abre à exposição e ao feedback externo, sua área cega tende a diminuir e sua área aberta tende a aumentar.
[5] Para uma breve análise a respeito da contribuição do conhecimento dos quatro temperamentos na Educação, cf.: RODRIGUES, Márcia Regna Silva. CORREIA, Murilo Flores. A contribuição da teoria dos quatro temperamentos para a educação: valorizando a individualidade nas salas de aula. Disponível em: <http://www.profala.com/arteducesp181.htm> Acesso em 17 mai. 2019.
[6] RODRIGUES, Márcia Regna Silva. CORREIA, Murilo Flores. A contribuição da teoria dos quatro temperamentos para a educação: valorizando a individualidade nas salas de aula. Disponível em: <http://www.profala.com/arteducesp181.htm> Acesso em 17 mai. 2019.
[7] Vale destacar aqui que nenhuma pessoa tem apenas um temperamento. Ainda que o normal seja um dos quatro temperamentos prevalecerem, o indivíduo sempre terá um pouco dos outros também, podendo apresentar traços de todos eles (cf.: LAHAYE, Tim. Temperamento controlado pelo espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1991, p. 20).
[8] LAHAYE, 1991, p. 23.
[9] LAHAYE, 1991, p. 22.
[10] LAHAYE, 1997, p. 27.
[11] LAHAYE, 1991, p. 28.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

CULTOS PRECÁRIOS




Já se passaram muitos anos, mas ainda sinto muitas saudades da "igrejinha"... Profundamente melancólico, insistentemente saudosista, inelutavelmente reflexivo, não consigo deixar de me comover com algumas lembranças preciosas. Essas lembranças são minhas, é verdade, mas os valores que elas evocam são comuns a muitos de nós, especialmente para aqueles que conheceram uma forma de Pentecostalismo puro, simples, sincero e marcante.

E acredite: essas lembranças não me impedem de prosseguir adiante, e não me impedem justamente porque evocam esses valores preciosos que me conduzem em minha peregrinação. Minha insistência em volver minha mente a essas lembranças, vez ou outra, não sinalizam para uma possível recusa de minha parte no sentido de seguir em frente.

Esse meu apego a essas lembranças de um passado remoto também não evidenciam um homem que tenha sido infeliz nos anos que se seguiram. Longe disto! Vivi e continuo vivendo uma boa vida, graças a Deus! Mas, de algum modo, preciso voltar a essas lembranças.

Para falar francamente, considero essas lembranças como bens preciosos, daqueles que devemos guardar por toda a nossa existência. E aqui, em mais uma de minhas reflexões, compartilho com você algumas dessas lembranças curiosas e alguns desses valores evocados por essas lembranças preciosas...

Ainda me lembro daqueles "cultos precários", sempre com um número reduzido de pessoas, o pandeiro como o instrumento oficial (até havia uma guitarra, mas ninguém mais sabia tocar) e o olhar das pessoas que passavam na rua e nos viam ali, cantando e pregando.

Ainda me lembro dos ensaios da “mocidade" (a mocidade era composta por meu irmão, eu e outros dois ou três jovens apenas); me lembro do momento em que cantávamos aquele louvor "Coração valente", da Banda Voz da Verdade e, acredite: eu fazia a voz principal...

Ainda me lembro de nós, da "igrejinha", pelas ruas do bairro, entregando folhetos e outras vezes fazendo visitas. E havia aqueles dias em que ficávamos todos felizes porque alguém diferente estava frequentando o culto naquela dada noite. E se houvesse uma conversão, então, aí é que a felicidade era completa... inenarrável, eu diria! E houve vários casos. Algumas dessas pessoas, inclusive, sei que permanecem na fé e são boas cristãs até hoje.

E o que dizer daqueles "cultos precários" que não prometiam nada, que seguiam frios até certa altura, mas, de repente... o Espírito Santo nos surpreendia, nos fazendo lembrar o amado texto de Atos 2.2: “E de repente...”. Absolutamente inesperadas, mas profundamente desejadas, essas manifestações do Espírito de Deus entre nós deixaram marcas profundas, até hoje. Ainda me lembro da minha mãe quando se levantava com uma palavra profética que tocava nossas almas; a reverência com que nos colocávamos naqueles momentos era digna da chegada de uma alta Autoridade e ainda me lembro que alguns choravam e de que muitas vezes nós voltávamos para casa radiantes, afinal, o Rei do Universo havia falado conosco naquela noite...

Oh! Ainda me lembro daqueles "cultos precários", mesmo tantos anos depois. Quero dar aqui alguns detalhes sobre as pessoas que faziam aqueles "cultos precários" acontecer. Vou descrevê-las brevemente e você logo perceberá que elas não tinham nada de especial: tratavam-se basicamente de um portuário analfabeto, que por vezes vinha para o culto imediatamente após chegar de um dia de trabalho pesado, ainda com a roupa do serviço, empurrando uma velha bicicleta; uma dona de casa muito dinâmica e versátil, de temperamento forte, alfabetizada, que se expressava bem, mas sem muita instrução e era ela a líder espiritual desses “cultos precários”; havia também um jovem negro, filho adotivo, que trabalhava para ganhar uma merreca, mas poucas vezes na vida conheci um crente tão dedicado como ele; havia ainda um adolescente sem muitas perspectivas sociais, filho adotivo também, que sofrera alguns traumas na infância por causa dos horríveis maus tratos que recebera da mãe biológica e que só viria a frequentar uma faculdade anos mais tarde, mas que mesmo assim adorava ler, escrever em cadernos e numa máquina de datilografar (os mais "experientes" entenderão) e que sonhava “alto”: ter uma estante cheia de livros (esse era eu). Havia também um casal e uma mãe solteira que frequentavam regularmente aqueles cultos, também pessoas simples, sem maiores e melhores condições.

Mas, o que havia de especial naqueles “cultos precários” e em nós, pessoas tão simples, que mesmo hoje, décadas depois, ainda me lembro deles com saudosismo? O que havia de especial nesses cultos? Eu respondo e aqui faço emergir, dessas preciosas lembranças, os valores que nos faziam ser tão felizes naqueles “cultos precários”. É que naquele tempo éramos movidos por uma preocupação primária, precípua e elementar: ser bons crentes e amarmos uns aos outros. “Sede unidos”, dizia minha mãe naquelas palavras proféticas que ela proferia algumas vezes.

Naquele tempo, não tínhamos carro, internet, recursos e contato com pessoas influentes. Faltava tudo e um pouco mais. Inseridos numa região de periferia, convivíamos com certo nível de violência, dificuldade de acesso a serviços básicos, mas curiosamente, vivíamos absolutamente felizes. Este texto não pretende inferir que pobreza é sinônimo de felicidade. Ricos e pessoas que vivem em condições melhores do que nós, também são felizes. Mas é curioso que nós, não tendo nada, tínhamos tudo; sendo pobres, éramos ricos; cultuando num cubículo, nos elevávamos para acima da simplicidade do lugar, pelo êxtase na adoração.

Aqueles "cultos precários" eram motivo de imensa alegria, de encontros e reencontros com Deus, de motivação para seguir em frente e se colocavam para nós como momentos repetidos de construção de relações duradouras. Acredite: aqueles "cultos precários" eram ansiosamente aguardados por nós. E como eles nos faziam felizes...

Daquele tempo, trago comigo essas lembranças de uma vivência pentecostal marcada pelo amor a Deus, pela prática de uma fé simples mas profunda, do exercício de cultos desprovidos de ornamentos, mas marcados pela presença de Deus. Na condição de leigos, fomos alcançados pela sabedoria da Palavra, Palavra que líamos com amor e procurávamos introduzir em nossas vidas.

Concluindo, digo que não posso idealizar aquele tempo e aqueles “cultos precários”. Tínhamos problemas, é claro, e vários! Mas viver o que vivi, com aquelas pessoas simples, me permitiu conhecer o evangelho de modo puro e simples. Me permitiu experienciar a vida cristã desprovida de interesses mesquinhos e egoístas, já que o que nos motivava era o amor a Cristo. Havia uma crença viva, uma fé pulsante. Do contrário, nada daquilo faria sentido. As práticas da vida cristã, como o ato de pregar, de visitar pessoas, de colaborar financeiramente mesmo tendo tão pouco, o deslocar-se de casa de três a quatro vezes por semana para realizar os “cultos precários”, dentre outras ações, não fariam sentido algum se não houvesse uma motivação espiritualmente maior, que nos fazia seguir adiante. As intenções eram puras. Havia sinceridade. Posso dizer que vivi, naqueles “cultos precários” o estado da arte do que é ser igreja e do que é cultuar...

Hoje, infelizmente, culto confunde-se com espetáculo e exibição humana; dízimos e ofertas são encarados como moeda de troca com o divino e não como mordomia cristã; o púlpito e a tribuna cristã tornaram-se espaços para autopromoção humana e não mais para a exposição exaustiva do evangelho. Desse modo, já não vejo mais tantos “cultos precários” acontecendo por aí. Os cultos, hoje, não têm nada de precário. Há muita parafernália, dinheiro envolvido, profissionalismo e formalidades em excesso nesses cultos de hoje... Mas confesso que isso tudo me é muito estranho. E desconfio que Aquele que disse que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome que Ele estaria entre eles, também não é muito afeito a esses cultos, já que Ele sempre amou a sinceridade e a simplicidade. Bem, Ele nasceu numa manjedoura, sendo Eterno se fez mortal e morreu numa cruz; sendo Santo, acolheu pecadores, prostitutas, publicanos e crianças, todas essas pessoas marginalizadas pela sociedade judaica. Desconfio que Ele de fato prefere os “cultos precários”, até porque nesses cultos, fica evidente a dependência humana de Deus. Não há espaço para ostentações. E a julgar pelos “cultos precários” que frequentei durante tantos anos, desconfio até que Ele nem mais esteja participando dos cultos de hoje em dia...

Psicanálise, o eu e os outros: encantamento, "dilaceramento" e desenvolvimento da pessoa humana

Por  Roney Cozzer , teólogo e psicanalista. www.teologiavida.com A Psicanálise é uma ciência que surge em conexão direta com a área médica ,...