sexta-feira, 23 de julho de 2021

BÍBLIAS DE ESTUDO: PRECISAMOS DE MAIS?

(Observação: este artigo foi originalmente escrito e publicado em 2015, em meu extinto site Teologia & Discernimento, e revisado e expandido para ser publicado aqui).

Foi com muita alegria que pude ter um de meus “rascunhos” prefaciados por aquele que considero ser não apenas um pregador, mas um pregador-teólogo, comprometido com a verdade do evangelho, Pr. Hernandes Dias Lopes. Suas palavras naquele prefácio foram marcantes e as compartilho aqui, com você: “Hoje o Brasil é o país que mais imprime bíblias no mundo, mas ainda temos uma geração de analfabetos da Bíblia. Poucas igrejas têm um compromisso sólido com o ensino das Escrituras” (LOPES, Hernandes Dias. Prefácio in: COZZER, Roney Ricardo. Introdução ao Antigo Testamento: Pentateuco, Livros Históricos, Poéticos e Proféticos. Curitiba, PR: Editora Emanuel, 2018). 

De fato, convivemos com uma enorme negligência no que tange ao ensino sistemático das Escrituras e a sua promoção pela liderança das nossas igrejas, especialmente as pentecostais (o que, como pentecostal, reconheço com tristeza). Nosso povo também é muito desinteressado de aprender a Palavra de Deus e de cultivar uma vida de devoção profunda (evitemos generalizações, é claro). 

Não é preciso uma pesquisa envolvendo muitas pessoas para se averiguar isso. Nossos cultos de ensino bíblico e de oração em geral ficam sempre vazios. Como alguém que vem proferindo palestras em igrejas e promovendo cursos bíblicos e teológicos, constato isso com meus próprios olhos. E nem sempre a razão desse esvaziamento se dá porquê o palestrante ou o professor é desqualificado. A realidade é que há mesmo um desinteresse, tanto por parte do povo como por parte da liderança de nossas igrejas.

Mas nem tudo são cardos! Temos presenciado sim um crescimento considerável do interesse por parte dos cristãos pelo conhecimento da Bíblia, inclusive entre pentecostais. Cresce a venda de livros teológicos e a busca por cursos teológicos, livres e com reconhecimento do Ministério da Educação e Cultura (MEC). E, naturalmente, cresce também o interesse por Bíblias em várias versões e pelas Bíblias de Estudo.

Por mais de uma vez já me perguntaram, pessoalmente e durante palestras que proferi sobre Bíblia e tradução bíblica, se precisamos mesmo de mais Bíblias de Estudo e se isso na verdade não é apenas o reflexo de um mercado que se instalou na Igreja evangélica Brasileira. A minha resposta para essas duas perguntas é sempre um “Sim”: sim, precisamos de mais Bíblias sim, um mercado se instalou. 

Estou convencido de que a minha resposta dupla representa a realidade em torno dessas questões. De fato, muitas Bíblias de Estudo já foram escritas e elas cumprem o seu papel no sentido de promover o conhecimento das Escrituras, sua melhor compreensão, o entendimento dos contextos que envolveram a produção do texto bíblico, oferecendo assim diversas contribuições. Eu mesmo tenho algumas em minha pequena biblioteca particular. E diga-se ainda que várias dessas Bíblias foram produzidas por estudiosos sérios, de vasta cultura bíblica, de erudição teológica, comprometidos com a difusão da Palavra. 

No esforço para não cometer injustiças e fugindo de qualquer parcialidade, e ainda, reconhecendo o valor desses homens a despeito de possíveis divergências teológicas, cito alguns nomes como Russell P. Shedd, Donald Stamps, Antonio Gilberto, Cyrus Ingerson Scofield, Luiz Sayão, Roland de Vaux, dentre outros, é claro. Sua contribuição nesse sentido é inegável. O próprio Donald Stamps, dias antes de morrer, deixou-nos um marcante testemunho, registrado na conhecida Bíblia de Estudo Pentecostal: “A visão, chamada e sentimento de urgência que tive da parte de Deus para preparar esta Bíblia de Estudo ocorreram-me quando eu servia ao Senhor como missionário no Brasil. Observei que os obreiros necessitavam de uma Bíblia com estudos que os auxiliasse na orientação de seus pensamentos e nas suas pregações. Isto posto, por dez anos, a partir de 1981, comecei a escrever as notas e estudos doutrinários desta obra” (STAMPS, Donald. Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2005, p. 15)

As palavras acima são comoventes e ensinadoras. Uma obra que vem à tona como resposta à necessidade de um povo, de uma igreja, de seus obreiros e que demora uma década (!) para ser produzida, demonstrando-se com isto que o projeto foi encarado com seriedade e dedicação. 

Há alguns anos, grande polêmica surgiu em torno de uma Bíblia que foi lançada com o nome de certo cantor evangélico, na época muito popular. E de fato, não era pra menos. A Bíblia levava a logomarca do cantor na capa e como ele mesmo afirma em um vídeo explicativo sobre o projeto, nela ele contava suas experiências pessoais com Deus, além de oferecer, na Bíblia, algumas fotos pessoais. Não pretendo aqui julgar suas intenções, como alguns fizeram na internet, na época, chegando a alegar que o produto surgia numa hora em que a vendagem dos seus CDs estava em declínio. Penso que só Deus pode julgar com total precisão as intenções do coração humano. Mas algumas questões merecem nossa avaliação crítica pela sua evidência: o referido cantor não demonstrava cultura bíblica alguma em suas canções e ele alegava crer que a Bíblia, com fotos e relatos de suas experiências pessoais com Deus, poderiam estimular os jovens a ler mais a Bíblia. As motivações para tal projeto são, no mínimo, questionáveis. Justificar um projeto dessa natureza alegando que precisa-se de uma Bíblia que divulga experiências pessoais para estimular a sua leitura é no mínimo um absurdo. Precisamos sim de Bíblias que expliquem a própria Bíblia levando-nos a entendê-la melhor! 

Embora tenha um pouco de reserva quanto a livros que tenham caráter muito pessoal, estou convencido de que seria muito mais legítimo por parte do cantor evangélico que ele tivesse escrito um livro, de cunho pessoal, onde poderia ter compartilhado com o seu público as suas experiências, mas atrelar isso a uma Bíblia é realmente inadmissível. Considero isso uma ofensa a uma tradição de longa data que vem sendo cultivada no sentido de produzir Bíblias de Estudos com enfoques variados. 

O referido cantor apelava à sua popularidade, dizia ser um dos mais influentes cantores evangélicos na época e que desejava usar isso para incentivar os jovens à leitura da Bíblia. Admito que nossa influência possa ter alguma utilidade, mas nesse caso, essa não seria essa uma motivação equivocada? Paulo expressa sua motivação em pregar o evangelho dizendo que isso era uma necessidade para ele (cf.: 1 Co 9.16), e não porque era influente. Em outras palavras, o evangelho por si, e não pelo anunciador. 

Fiquei mais consternado ainda ao saber que o projeto foi patrocinado pela Sociedade Bíblica do Brasil, uma editora cujo legado maior é a difusão das Escrituras no Brasil e no mundo. Deixo claro aqui que minha crítica neste texto não me leva a ignorar o fato de que, no que tange à difusão da Bíblia, a Sociedade Bíblica do Brasil é uma das maiores referências mundiais. Estou convencido, contudo, de que tal patrocínio, por parte da referida Sociedade, é incoerente com a sua visão, com o seu legado e com o seu projeto maior que é “Promover a difusão da Bíblia e sua mensagem como instrumento de transformação e desenvolvimento integral do ser humano” (Sociedade Bíblica do Brasil [site]. Disponível em <http://www.sbb.org.br/interna.asp?areaID=14>. Acesso em 13 abr. 2015). E reconheço que ela tem, com eficácia, cumprido essa missão, para glória de Deus. Mas, por que patrocinar um projeto como esse, que leva o nome de um cantor que em suas canções não transparece cultura bíblica, não evidencia intimidade com a Bíblia e dava um viés essencialmente pessoal ao projeto?

Voltando à pergunta que dá título a este texto, “se precisamos de mais Bíblias de Estudo?”, respondo que Sim e que Não. Sim, pois precisamos que o povo evangélico tenha à sua disposição ferramentas de estudo de qualidade, produzidas por estudiosos com boa formação e experiência, com vistas a aumentar sua compreensão da Palavra de Deus. E não, definitivamente não precisamos de Bíblias que sejam produzidas com vistas a divulgar experiências pessoais e imagens pessoais, sendo reduzidas apenas a uma possível tendência de mercado. E no mais, experiência pessoal é pessoal: só serve para quem a teve. No máximo, podemos colher algumas lições. 

Não, não precisamos de Bíblias que divulguem fotos e fatos sobre quem quer que seja porque essa pessoa é influente ou famosa. Isso não produz espiritualidade e nem profundidade de vida cristã. Isso só será gerado no cristão quando ele desenvolver uma vida de contínua comunhão com Deus por meio da oração, da leitura e do estudo contínuo das Escrituras e sua consequente compreensão. Esse caso, na época, na verdade, não foi o único. Outros projetos ridículos como esse já foram veiculados e isso só evidencia o quanto a Igreja brasileira precisa dar meia volta em direção a verdade do evangelho e viver conforme ela. Lamento profundamente que uma crise se instala em nossos dias e precisamos de fato experimentar um reavivamento, um retorno às Escrituras.

Concluo este breve texto desejoso de que Deus continue sim levantando teólogos para produzirem novas Bíblias de estudo, mas com a motivação correta, a exemplo do que pudemos ler acima, das palavras do Missionário Stamps, autor dos estudos e notas da Bíblia de Estudo Pentecostal. Obras que surgem com o objetivo de servir de modo eficaz à Igreja brasileira, enobrecendo assim sua utilidade e finalidade.

sábado, 17 de julho de 2021

TABELA: HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA BÍBLICA

Prezado(a) leitor(a), tabelas tem a grande vantagem de nos permitir organizar a informação de modo panorâmico. A tabela abaixo é um esforço para organizar, em ordem cronológica, os documentos, personagens e instituições que tem relação com a história da interpretação das Escrituras.


HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Documentos, personagens, conceitos e instituições relacionados à interpretação

Breve descrição

Ocasião histórica

Targums judaicos (no plural é targumim).

São traduções e comentários da Bíblia Hebraica em aramaico, produzidos em Israel e na Babilônia.

Período do Segundo Templo até o início da Idade Média.

A Septuaginta (LXX)

Tradução grega do Antigo Testamento hebraico. É considerada a primeira tradução completa das Escrituras, na Antiguidade.

Entre os séculos dois e três a.C.

Rabino Hillel

Desenvolveu sete regras.

Primeiro século da Era Cristã.

Pesher

Exegese desenvolvida pelos mestres essênios, na comunidade de Qumran. O peshat era o método literal, que considerava o aspecto filológico e o contexto histórico.

Primeiro século da Era Cristã.

Midrash

Forma narrativa desenvolvida pelos judeus, através da tradição oral. A palavra Midrash vem da junção de duas palavras hebraicas, "Mi" que significa "quem" e "Darash" que significa "pergunta". O plural de midrash não é midrashim, segundo a língua hebraica.

É um dos dois tipos de interpretação típicas da hermenêutica rabínica, juntamente com o Pesher. O Midrash consistia em buscar o sentido oculto que estava além do significado evidente da passagem.

Foi criada no século I mas a sua primeira compilação se deu apenas no quinto século d.C., no livro Midrash Rabbah.

O uso do Antigo Testamento pelo Novo Testamento.

“[...] os escritores do Novo Testamento usaram quase 300 citações do Antigo Testamento juntamente com centenas (ou até milhares, de acordo com alguns) de outras alusões a ele” (SILVA. KAISER JR., 2002, p. 202).

Primeiro século da Era Cristã.

Escola de Alexandria

Utilizava o método alegórico para interpretar as Escrituras.

Primeiros três séculos da Era Cristã.

Orígenes - anagogia

Seguia o método alegórico de Filo, adotado na escola de Alexandria. Utilizava a anagogia (palavra que significa “ascendente”), método que consistia em ascender a alma do nível da carne para o nível espiritual.

185-253/254 d.C. aproximadamen-te.

Escola de Antioquia

Utilizava a doutrina da theoria entendendo que as Escrituras possuíam um único significado que incluíam o literal, o espiritual, o histórico e o tipológico (SILVA. KAISER JR., 2002, p. 202).

Foi fundada, provavelmente, por Luciano de Samosata, por volta do final do terceiro século d.C.

Escola do Ocidente

Foi uma escola Eclética, pois utilizava princípios das Escolas de Antioquia e de Alexandria. Foi representada por grandes teólogos, como Jerônimo e Agostinho (SILVA. KAISER JR., 2002, p. 202). Incluiu um elemento que até então não havia sido considerado como uma questão importante: a autoridade da tradição na interpretação da Bíblia. Foram figuras de destaque dessa escola: Hilário, Ambrósio e principalmente, Agostinho e Jerônimo, o tradutor da Vulgata Latina.

Entre o quarto e o quinto século d.C.

Quádriga

Crê-se que foi João Cassiano, um monge e escritor asceta do sul da Gália, falecido no final do quinto século d.C., quem elaborou a Quádriga. Agostinho, tido como um dos principais representantes da escola Ocidental, defendeu também esse sentido quádruplo das Escrituras, a Quádriga. A Quádriga distingue quatro sentidos nas Escrituras, a saber:

 

1. O sentido literal ou histórico: busca o sentido evidente e óbvio do texto;

2. O sentido alegórico ou cristológico: é o sentido mais profundo apontando sempre para Cristo;

3. O sentido tropológico ou moral: relacionado ao cristão em sua conduta, e,

4. O sentido anagógico ou escatológico: relacionado ao futuro.

Início da Idade Média.

Tomás de Aquino

Defendeu o sentido literal como base para todos os outros sentidos das Escrituras, sem necessariamente negar esses sentidos. Na verdade, ele, assim como outros estudiosos medievais de destaque, manteve-se leal ao método alegórico, que prevaleceu como principal método na Idade Média. Aquino chegou a escrever uma defesa da Quádriga em Suma Teológica.

1225-1274


Elabora por Roney Cozzer

Referências para a tabela

NETO, Tiago Abdalla. Uma proposta de abordagem hermenêutica para a compreensão do uso do Antigo Testamento no Novo Testamento – parte 2. Teologia brasileira. [Site]. Disponível em: <https://teologiabrasileira.com.br/uma-proposta-de-abordagem-hermeneutica-para-a-compreensao-do-uso-do-antigo-testamento-no-novo-testamento-parte-2/>. Acesso em 17 jul. 2021.

SILVA, Moisés. KAISER Jr, Walter C. Introdução à Hermenêutica Bíblica: como ouvir a Palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. Trad.: Paulo César Nunes dos Santos. Tarcízio José Freitas de Carvalho e Suzana Klassen. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.

sábado, 3 de julho de 2021

SOBRE RELAÇÕES HUMANAS

Prezado(a) leitor(a), compartilho com você algumas máximas provocativas a respeito da arte das relações humanas. Este é um assunto muito caro para mim e as reflexões a seguir são frutos de minhas percepções a respeito do tema, de leituras e do meu esforço pessoal para desenvolver a capacidade de me relacionar melhor com o meu próximo, ao longo de muitos anos, ora acertando, ora errando, mas buscando sempre progredir neste aspecto. 

1. Aprendi que, em relação a algumas pessoas, o melhor caminho é amá-las, mas manter sempre uma certa distância segura;

2. Seja cordial e auditivo com todos, mas amizade, ofereça para poucos. Somente a prova da convivência poderá mostrar quem realmente é amigo;

3. Confidências são só para aqueles que as avaliam com sabedoria e amor. Lembre-se: não administramos o que as pessoas farão com aquilo que damos a elas;

4. Fale menos, ouça mais; evite responder sem que te perguntem ou justificar-se quando não está diante de um juiz. Aja com integridade e com a melhor intenção, e poderá sempre falar com segurança;

5. Não construa paredes, mas pontes. Você poderá precisar atravessar o rio em algum momento;

6. Faça o bem e ame incondicionalmente, mas não carregue quem tem condições de andar. Você não estará ajudando realmente essa pessoa;

7. Não fale mal das pessoas. Ao fazer isso, você na verdade fala mais de você do que das pessoas...

8. Não é possível mudar as pessoas. No máximo, influenciá-las. Sabendo disto, você reconhece que na maior parte da vida o mais importante é modificar a si mesmo;

9. No escuro, seja quem você seria no claro. D. L. Moody estava certo quando disse que "caráter é o que somos no escuro". Ninguém sustenta duas personalidades para sempre;

10. Ética, seja boa ou ruim, é como o bumerangue: sempre volta para você;

11. Não subestime as pessoas pelo que elas NÃO possuem. A fome é um dos elementos que faz o leão ser o que ele é;

12. Elogie com sinceridade, só critique quem permite que você o faça (e em particular!) e evite a bajulação. Acredite: relações utilitárias podem até gerar algum benefício, mas são o caminho para a solidão profunda;

13. Pode acreditar: a felicidade passa pelas relações humanas. Poucas coisas na vida valem mais que uma mão amiga, o sorriso à mesa de uma filha querida, o abraço de um cônjuge companheiro e uma boa conversa com um amigo querido e verdadeiro... Detalhe: isso tudo não custa nada, mas você precisa plantar e cultivar...

14. Entenda de uma vez por todas: as pessoas são sempre e ambiguamente maravilhosas e complexas, rasas e profundas, próximas e distantes, preenchidas e vazias... Mas lembre-se: você é uma delas!

Por Roney Cozzer


 

Psicanálise, o eu e os outros: encantamento, "dilaceramento" e desenvolvimento da pessoa humana

Por  Roney Cozzer , teólogo e psicanalista. www.teologiavida.com A Psicanálise é uma ciência que surge em conexão direta com a área médica ,...