Ao nível da análise lexical ou semântica, determina-se o sentido das
palavras que configuram o texto em si e no contexto linguístico em que se
inserem, na consciência de que o sentido não é uma propriedade inerente das
palavras, e de que é sempre em contexto que o sentido pré-tendido se decide
face ao carácter polissémico das palavras na língua (Isidro Pereira Lamelas).[1]
O testemunho do SENHOR é fiel e dá sabedoria aos símplices (Salmo
119.130).
INTRODUÇÃO
Algumas perguntas cabem neste momento: Deve a Bíblia ser lida hoje, por nós, no século XXI, sem critérios interpretativos que considerem todos esses fatores que envolvem a sua produção? Em outras palavras: devemos nos ater a uma leitura “simples” do texto bíblico e considerar essa leitura suficiente? O texto bíblico tem assim o mesmo significado para nós que teve para os seus primeiros destinatários? De fato, como mencionado acima, a Bíblia tem se tornado o livro de um povo, que dele se apropria, mas até que ponto essa apropriação corresponde a uma correta compreensão do que de fato a Bíblia está afirmando?
É o conhecimento da Exegese Bíblica (como também da Hermenêutica Bíblica) que auxilia na compreensão da mensagem contida nos textos bíblicos e, por extensão, auxilia também na elaboração de respostas plausíveis às perguntas acima. Nas linhas que se seguem, são apresentadas ao leitor(a) algumas conceituações fundamentais sobre a Exegese Bíblica, bem como são comentados alguns passos que precisam ser dados na exegese de uma perícope bíblica.
1. EXEGESE BÍBLICA E SUAS DEFINIÇÕES: UMA DISTINÇÃO
Uma questão sempre recorrente no ensino da Exegese é a seguinte: Qual a diferença entre a Hermenêutica e a Exegese Bíblicas? No campo da Teologia Bíblica, as duas disciplinas são essenciais para a compreensão dos textos sagrados. São duas “ferramentas” indispensáveis nesse processo interpretativo.
Enquanto a Hermenêutica fornece os princípios, regras e informa sobre as características do texto bíblico, a Exegese procura trabalhar diretamente com o texto bíblico, escrutiná-lo, seguindo alguns passos e usando, inclusive, princípios fornecidos pela própria Hermenêutica. Desse modo, a Hermenêutica, grosso modo, pode ser comparada a uma espécie de “manual”, ao passo que a Exegese ao “passo a passo”, o fazer interpretativo na prática.
O exegeta é aquele que faz uma espécie de “dissecação
do texto bíblico”, buscando inclusive nos pormenores, vendo o que o leitor
comum geralmente não percebe e trazendo à tona o sentido exato[3] do texto, ou o sentido
original pretendido pelo autor. Faz, assim, uma busca laboriosa e se alegra com a
descoberta que faz. Seu exaustivo trabalho é recompensado pelo “tesouro” que
traz à tona.
1.1 A necessidade da Exegese Bíblica
A necessidade da Exegese Bíblica está na mesma proporção da necessidade que se tem de interpretar a Bíblia. Precisamos interpretá-la? Todo texto carece de interpretação se há desejo de se compreender corretamente a mensagem nele residente. Aliás, em certo sentido, o leitor popular da Bíblia é um intérprete dela.
Interpretamos um outdoor, um SMS, uma mensagem de WhatsApp, entre outras. É claro que essas são comparações simplistas em relação à interpretação da Bíblia, um conjunto de diversos textos antigos e riquíssimo, mas que servem para ilustrar essa questão da necessidade da correta compreensão do sentido da mensagem.
Quando pensamos no fato de que é na Bíblia que fundamentamos nossas liturgias, doutrinas, valores, etc., fatores que conduzem nossas vidas, reconhecemos então a seriedade dessa questão. Quando pensamos ainda na importância de se compreender corretamente o evangelho de Cristo, comunicado no texto bíblico neotestamentário, então mais uma vez precisamos recorrer à Exegese como uma eficaz ferramenta de compreensão da mensagem bíblica.
Nossa proclamação do evangelho
passa, de certa forma, pela Exegese. O pregador é, num certo sentido, um "exegeta" (não no sentido profissional do termo). Assim, o papel da Exegese é buscar compreender a fundo que mensagem
foi comunicada naquele dado texto bíblico.
A Exegese Bíblica não
pressupõe, todavia, que a Bíblia seja privilégio dos exegetas, isto é, que sua
mensagem seja inacessível ao homem comum, que não dispõe do conhecimento e dos
recursos de que dispõe o exegeta. Esse acesso, todavia, possibilitado pela tradução
bíblica que vem sendo efetuada ao longo de séculos, foi por si mesma um trabalho exegético.
Mas isso não garante ao leitor um acesso total – é preciso continuar analisando o texto e a
Exegese viabiliza esse avanço, que vai descortinando novas verdades a respeito do
texto bíblico. Muitas vezes, uma leitura que parte apenas da simples
assimilação do texto na língua vernacular não possibilita perscrutar as riquezas
ali contidas, que podem ser alcançadas mediante a pesquisa exegética.
1.2 Exegese, o que é?
Creio que uma das melhores
definições para Exegese é “trabalho árduo”. Se alguém pretende aprender e fazer
a exegese de um texto, mas não está disposto a recorrer a ferramentas de
pesquisa e a gastar muitas horas na interpretação de uma perícope, sugiro que
desista da Exegese Bíblica ou mude sua perspectiva nesse sentido. Exegese requer
esforço e o emprego de tempo na pesquisa.
Uwe Wegner (2012) comenta que a
palavra Exegese deriva do grego exegesis
e “tanto pode significar apresentação, descrição ou narração como explicação e
interpretação”.[4]
O mesmo autor afirma ainda que Exegese é, portanto, “o trabalho de explicação e interpretação de
um ou mais textos bíblicos”. Evidentemente, como as escolas interpretativas são
variadas e os métodos interpretativos não são unânimes, fala-se de “leituras”
e/ou “exegeses” das Escrituras.
A busca ou pesquisa da
Exegese Bíblica consiste ou tem como escopo “cavar” o sentido primeiro do texto
bíblico. Assim, quando alguém diz que deseja fazer a exegese de um texto, está
na verdade dizendo que objetiva identificar esse sentido original do texto, que
pode estar distante de nós por questões como as que foram citadas anteriormente:
cultura, línguas, história, etc.[5]
2. MÉTODOS
Em linhas gerais, são apresentados aqui dois métodos interpretativos das Escrituras: o Método Histórico-Crítico[6]
e o Método Histórico-Gramatical[7].
O Método Histórico-Gramatical difere do
Histórico-Crítico quanto à sua aproximação da Bíblia Sagrada. Se o Método
Fundamentalista mencionado por Uwe Wegner (2012) for o mesmo Método Histórico-Gramatical, então existem
alguns pontos vitais de discordância na compreensão de Wegner quanto ao que vem
a ser o Método Histórico-Gramatical e o que dizem os próprios defensores dele[8]; vejamos:
- Wegner comenta que o Método Histórico-Gramatical surge a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Os defensores do Método Histórico-Gramatical defendem que ele lança suas raízes já a partir da Escola de Interpreteção de Antioquia no século IV vindo a ser revitalizado no período da Reforma Protestante;
- Wegner entende que o Método Fundamentalista tende a absolutizar o sentido literal do texto bíblico. Os defensores do Método Histórico-Gramatical, por sua vez, enfatizam o sentido literal, procurando identificar o que o autor original quis dizer. A própria Bíblia é, assim, o seu melhor intérprete. Mas o texto é um evento histórico e por isso dedicam-se a estudá-lo dentro de um contexto histórico. Os elementos históricos e culturais que envolveram a produção daquele dado texto bíblico devem ser estudados;
- Wegner comenta que o Método Fundamentalista apresenta pouca sensibilidade “para a condição humana de seus autores, com tudo que isso implica”.[9] Os defensores do Método Histórico-Gramatical, no entanto, insistem em que a revelação de Deus presente na Bíblia nos foi dada por meio de um livro divino-humano. Com efeito, Gordon Fee, exegeta pentecostal, afirma que os autores humanos da Bíblia “falavam seu próprio idioma a partir da sua própria cultura e dentro da sua própria história, devemos voltar até eles e escutar o que eles queriam dizer dentro dos seus próprios contextos históricos – se é para escutarmos a palavra do Deus vivo – tanto a eles quanto a nós”.[10] Talvez os que adotam o MHG não sejam assim tão insensíveis à condição humana dos autores bíblicos e, por conseguinte, à condição humana da própria Bíblia.
Nosso espaço
não me permite delimitar de modo mais extensivo as características de cada um
dos métodos, mas de forma esboçada, alisto a seguir as principais características
desses dois métodos exegéticos.
2.1 Características do Método Histórico-Crítico
O MHC é um método histórico
por se interessar profundamente pelas fontes históricas, pelas circunstâncias
históricas e pela evolução histórica que cerca os textos bíblicos.[11] É crítico porque critica
as fontes que está estudando. Reivindica para si uma autoridade científica. É
racional e questionador e se apresenta como uma espécie de “retalho”, com
diversas leituras e exegeses. Como bem pontua Augustus Nicodemus, ele deu
origem a uma diversidade de críticas: das fontes, da forma e da redação.[12]
Por ser histórico, o MHC se pautará por uma indagação sempre constante, afinal,
no campo histórico “[...] não existem juízos absolutos, mas somente juízos prováveis”.[13]
Rejeita a autoridade e a
infalibilidade das Escrituras, vendo-a, num certo sentido, como um livro
qualquer. Caraterísticamente, o MHC é racionalista, até por ser herdeiro do
Iluminismo, o Les Lumières, que
supervalorizou a razão humana. O próprio Wegner, ele mesmo um utilizador do
MHC, indica algumas deficiências no método: academicismo que distancia o
teólogo do povo leigo, não há uma segurança nos seus resultados, até por sua
atitude sempre questionadora, a tendência de que o texto seja apenas
interpretado e não interprete ele mesmo as pessoas, os poucos resultados
práticos, concretos, para a vida das pessoas na aplicação da mensagem do texto
bíblico e o historicismo como uma falácia presente no método.[14]
2.2 Características do Método Histórico-Gramatical
O teólogo presbiteriano
Augustus Nicodemus encara o Método Histórico-Gramatical como uma espécie de “atitude interpretativa
para com a Bíblia”. Ele comenta o seguinte:
Essa atitude interpretativa para com a Bíblia tem sido chamada de
gramático-histórica porque considera importante para seu entendimento tanto a
pesquisa do sentido das palavras (gramma,
em grego) quanto a compreensão das condições históricas em que foram escritas.
Apesar de sua idade avançada e das críticas que tem recebido, ainda prefiro
esse método de interpretação, por várias razões.[15]
Os defensores do Método Histórico-Gramatical defendem que ele recebe o texto bíblico como Palavra inspirada e inerrante de Deus. Os milagres são eventos históricos e não mitos como proposto por teólogos como Rudolf K. Bultman (1884-1976). O Método Histórico-Gramatical é aberto ao sobrenaturalismo bíblico, enquanto no Método Histórico-Crítico há rejeição a ele. Acredita na perspicuidade bíblica, isto é, acredita na clareza e assimilação da mensagem bíblica, de modo que as doutrinas centrais e a mensagem principal da Bíblia são acessíveis a todos.
O estudante da exegese pode ser tentado a pensar que a Bíblia é uma espécie de privilégio de uma elite acadêmica, mas o conceito de perspicuidade, abraçado pelo Método Histórico-Gramatical, admite que há nas Escrituras clareza, o que a torna uma mensagem comunicável mesmo às pessoas simples e sem preparo exegético. Tal pressuposto, contudo, não indica, em hipótese alguma, que o trabalho exegético não seja necessário. Gordon Fee esclarece:
Não depreciamos [...] o tipo de leitura bíblica devocional que a
maioria das pessoas pratica. Lendo com coração e mente abertos, confiam no
Espírito Santo para falar diretamente do texto das Escrituras para a sua
própria vida. Uma pessoa que está passando por uma dificuldade pessoal, pode
estar lendo Isaías 45 e escutar num sentido pessoal a promessa que Deus fez a
Israel (no sentido de trazer a nação de volta do cativeiro): “Eu irei adiante
de você e aplainarei montes”. Semelhantes experiências são comuns entre a
maioria das pessoas que leem a Bíblia em espírito de oração, e estão dentro do
poder inerente das Escrituras.
Como tais momentos são muito pessoais, ninguém argumentaria de modo
razoável que esse significado do texto é universalmente aplicável a todos os
demais crentes, embora cada um tenha, por certo, semelhantes experiências da
palavra viva de Deus em comum. Mas o estudo das Escrituras, mediante o qual o povo
de Deus cresce no entendimento e cada vez mais na semelhança de Cristo, exige
que nos ocupemos na pesquisa histórica chamada exegese.[16]
O exegeta reconhece a
necessidade de entender o que o texto disse, mas também o que está dizendo,
hoje, para nós. Desse modo, o exegeta pratica a exegese como um trabalho rígido, inflexível,
criterioso, mas admitindo que a aplicação do texto é multiperspectiva. Assim,
reconhecemos como o salmista que “o testemunho do Senhor é fiel e dá sabedoria
aos símplices” (Sl 119.130).
Outra característica do Método Histórico-Gramatical é que ele não admite contradições
nas Escrituras; tem a inerrância bíblica como um importante pressuposto. Quando se depara com textos que sejam aparentemente discrepantes, o
exegeta procurará meios de harmonizá-los por meio de uma pesquisa maior. Assim,
enfatiza-se sobremodo a inerrância das Escrituras. Norman L. Geisler e Thomas Howe
(1999) chegam a propor um silogismo relacionado à inerrância bíblica:
Deus não pode errar.
A Bíblia é a Palavra de Deus.
Portanto, a Bíblia está isenta de erros.[17]
O Método Histórico-Gramatical reconhece a Bíblia como Palavra de Deus, não prescinde de uma pesquisa séria e admite que nela Deus se revela pela Palavra que, por sua vez, está inserida num contexto histórico.
3. TRADUÇÃO E CRÍTICA TEXTUAL
A tradução bíblica pode ser
encarada como um ministério da Igreja, dada a sua enorme contribuição para a
causa do Reino de Deus. Só para exemplificar, não se pode pensar no trabalho missionário divorciado do
trabalho de tradução bíblica. Geralmente as duas atividades se complementam.
É importante destacar que, concernente ao trabalho exegético, a tradução é sempre da perícope que se está analisando. Pode ser entendida como uma das etapas do trabalho exegético, e uma das primeiras. O que está sendo apresentado aqui, ao leitor ou leitora, é uma conceituação geral do que é a tradução bíblica.
As palavras “tradução” e “versão”, em geral, são usadas de maneira intercambiável, mas Norman L. Geisler e William Nix
(1997) chamam nossa atenção para o fato de que:
Tecnicamente falando, versão é uma tradução da língua original (ou com
consulta direta a ela) para outra língua, ainda que comumente se negligencie
essa distinção. O segredo para a compreensão é que a versão envolve a língua
original de determinado manuscrito.[18]
Em linhas gerais, podemos definir “tradução bíblica” como o esforço para transpor a mensagem residente nas línguas originais (hebraico e grego), em que o texto bíblico nos é transmitido, para as línguas receptoras, em diversas partes do mundo. Tal trabalho é, na verdade, uma atividade ligada à Crítica Textual, como veremos adiante.
Katharine Barnwell (2011) afirma que traduzir “[...] é
reproduzir, da maneira mais exata possível, o significado da mensagem original
de uma forma natural no idioma ao qual se está traduzindo”.[19] Podem ser consideradas como metas do trabalho de tradução da Bíblia a adaptação, a exatidão e
a naturalidade.
Pode-se considerar a Septuaginta (LXX) como a primeira tradução conhecida das Escrituras. Envolta numa tradição, a história de como foi produzida nos chega afirmando que 70 eruditos judeus trabalharam no Antigo Testamento hebraico, vertendo-o para o grego. Daí o nome “Septuaginta” (“setenta” em grego, apontando para os 70 sábios tradutores). Isso se deu entre o terceiro e segundo séculos antes de Cristo.
Já a Vulgata foi a primeira tradução da Bíblia para o Latim, língua falada na Europa Ocidental e na África do Norte, regiões onde o Cristianismo havia chegado. Outras traduções parciais para o latim já haviam sido feitas, mas a Vulgata, preparada por Jerônimo, no quarto século, foi a precursora e permaneceu durante séculos como a tradução oficial da Igreja Católica.
Dentre os pioneiros da
tradução da Bíblia para o inglês estão John Wycliffe (1320-1383) e Willian
Tyndale (1494-1536). Este último rendeu a vida pela causa da tradução da
Bíblia. Junto com Wycliffe, foi considerado como uma das “estrelas da alva da
Reforma Protestante”.
Eu imploro a vossa senhoria que peça ao comissário que tenha a bondade de me enviar, das minhas coisas que estão com ele, um gorro mais quente, porque sinto muito frio na cabeça. Peço também que ele me envie um casaco mais quente, porque este que eu tenho é muito fino. Peço ainda que me mande um pedaço de pano para que eu possa remendar minhas calças. Mas, acima de tudo, imploro que mande minha Bíblia em hebraico, meu dicionário de hebraico e minha gramática de hebraico, para que eu possa continuar o meu trabalho.[20]
Em alemão, destaca-se Martinho Lutero (1483-1546) e em português, João Ferreira de Almeida (1628-1691), o primeiro a fazer uma tradução quase completa da Bíblia para o português. Ele traduziu até Ezequiel 48.21 vindo a falecer. Em 1694 o Reverendo Johannes op den Akker concluiu a tradução do Antigo Testamento. O Novo já havia sido concluído desde 1676.
A Crítica Textual, por sua vez, vem prestando um relevante serviço à compreensão da Bíblia, bem como à sua tradução. Numa sentença breve, essa ciência pode ser definida como “o trabalho de recuperação de um texto original cujo autógrafo ou autógrafos não mais existam”. Neste sentido, ela lida diretamente com os manuscritos bíblicos e daí ser chamada também de “Manuscritologia Bíblica”. A Crítica Textual também pode ser praticada como uma etapa da exegese de uma perícope bíblica.
No campo da Crítica Textual (entendida como uma ciência propriamente dita) se consideram diversos assuntos tais como: os materiais de escrita primitivos
da Bíblia, os tipos, formas e diagramações de escrita, as abreviaturas
presentes nos originais bíblicos (como as chamadas nôminas sacras), as diversas
versões da Bíblia, bem como a própria história da transmissão do texto bíblico,
as famílias textuais, as variantes textuais, entre outros assuntos. É de fato
uma ciência, que trabalha em cooperação com outros ramos do saber humano, como
a Filologia, por exemplo.
Atualmente, o título “Baixa
Crítica” já não tem sido mais tão usado, justamente para evitar uma impressão
incorreta desta ciência. Pode-se concluir que “Baixa Crítica” tenha a ver com o
mérito, quando na verdade não é isto que o título indica.
As expressões “baixa crítica” e “alta crítica”[...] têm dado margem a
objeções por parecerem indicar diferentes graus de importância. Em vista disso,
em tempos recentes têm sido substituídas respectivamente pelas expressões “crítica
textual” e “crítica histórica”, que melhor descrevem a natureza e os objetivos
de ambas as ciências.[22]
A crítica bíblica, de forma
geral, incluindo a textual e a histórica, devem ser aceitas como auxiliares no
sentido de corroborar convicções teológicas e cristãs em torno do evangelho,
como bem pontua Wilson Paroschi:
A crítica bíblica [...] quando devidamente aplicada, está a serviço da
fé, com o objetivo de descobrir, tanto quanto possível, seus fundamentos
racionais e verdadeiros e assim fazê-los passar de “presunções religiosas” a “certezas
científicas”.[23]
A Alta Crítica, por sua vez, analisa os textos bíblicos de forma diacrônica, buscando entender o seu processo de formação. Em outras palavras,
a Alta Crítica busca as fontes do texto bíblico, que deram origem a ele.
Geisler pontua que a Alta Crítica procura responder à pergunta “[...] quem disse e quando, onde e por que foi escrito”.[24] Já a Crítica Textual produz uma pesquisa sincrônica, trabalhando diretamente com os textos bíblicos com vistas a restaurar o original, ao passo que a Alta Crítica produz uma pesquisa diacrônica, buscando o sentido teológico que reside naquele dado texto bíblico, nem sempre se pautando pela literalidade do mesmo.
Como exemplo disso podemos considerar a maneira como os
três primeiros capítulos de Gênesis são tratados na Alta Crítica. Enquanto a
Igreja, em sua tradição ao longo de dois mil anos, bem como o Judaísmo, entende esses capítulos numa perspectiva mais literal, a Alta Crítica não os
encara como tal, antes, os considera como relatos mitológicos, lendários,
alegóricos ou “saga”, para falar nos termos de Karl Barth.[25]
Eles têm, portanto, mais um interesse teológico do que histórico,
propriamente dito, pelo menos no que tange à correta interpretação do texto.
A Alta Crítica engloba
diversas outras críticas, por assim dizer, como por exemplo, a Crítica
Histórica, a qual é um método abrangente, que engloba diversas
técnicas de datação e identificação de documentos e tradições, com vistas a
interpretar o texto bíblico. O exegeta Osvaldo Luiz Ribeiro menciona como
predecessores deste método “Rashi e Spinoza, por exemplo, para citar dois
importantes judeus, e Jean Astruc, para dar nome a um cristão”.[26]
O referido exegeta encara a Crítica Textual, Crítica da Forma, Crítica
Literária, entre outras, como “ferramentas” (em suas próprias palavras) do
assim chamado “Método Histórico-Crítico”. Para Geisler, as raízes da crítica
histórica da Bíblia remontam ao padre francês Richard Simon, em uma série de
livros, “[...] a partir de 1678, em que aplicou uma abordagem crítica e
racionalista para estudar a Bíblia”.[27]
Em linhas gerais, a Alta Crítica, com todas as suas “críticas”, rejeita o que vem sendo defendido e ensinado pela posição ortodoxa ou conservadora, que o Pentateuco foi escrito por Moisés, os livros proféticos foram escritos
pelos profetas que dão seus nomes a eles, os salmos davídicos foram escritos
por Davi e que todos os livros do Antigo Testamento estavam já escritos por
volta de 400 a.C. Sintetizando bem o que vem a ser a Alta Crítica, R. L. Harris
comenta que ela:
[...] abrange várias e distintas posições. Todas elas negam a
genuinidade e a datação primitiva dos livros do Antigo Testamento como um todo.
Alguns pontos de vista extremos, como o sueco da tradição oral, admitem que
todo o Antigo Testamento foi escrito antes de 400 a.C. Outros críticos
afirmavam que o Pentateuco foi escrito por quatro autores ou mais, ou ainda por
uma escola de autores (J, E, D e P), pelo menos mil anos depois de Moisés.
Salomão e Davi escreveram muito pouco. Os livros proféticos deveriam ser
divididos entre os autores proféticos e vários de seus sucessores, ou talvez os
próprios profetas não chegaram a escrever nada. Existe hoje uma ampla
diversidade no campo da crítica, mas há unanimidade quanto à crença de que o
conceito cristão histórico da origem do Antigo Testamento e seu cânon está
errado. A conclusão do conceito crítico é que o Antigo Testamento está cheio de
lapsos históricos, factuais e doutrinários. Pode ser uma revelação de Deus
apenas no sentido geral de revelação experimental, não no sentido de verdade
factual divina. A existência de tão diferentes opiniões complica enormemente o
estudo do cânon do Antigo Testamento. Problemas semelhantes de crítica envolvem
também o cânon do Novo Testamento, mas nesse caso, as fontes estão muito mais
próximas dos eventos referidos.[28]
4. DELIMITAÇÃO DE TEXTOS
Este tópico abordará a
questão das perícopes bíblicas e sua delimitação. O trabalho de delimitação
dos textos bíblicos nem sempre é facilitado pelo nosso sistema de referenciação
bíblica. Nesse momento é preciso lembrar que o texto bíblico originalmente foi
escrito sem qualquer tipo de divisão como versículo, capítulo e perícope.
Assim, acontece as vezes que um capítulo inicia durante uma perícope, como
vemos em 1 Coríntios 11.1 que é, na verdade, continuação da perícope de 1
Coríntios 10.23-11.1.
Uma perícope é uma unidades literária. Várias perícopes formam o texto bíblico. A ideia de "parágrafo" na língua portuguesa ajuda a ter uma noção do que é uma perícope.[29] Em meu canal no YouTube Repensando meu cristianismo disponibilizei uma videoaula sobre delimitação de perícopes. O título da videoaula é Delimitação de perícopes bíblicas (disponível aqui).
A delimitação de perícopes bíblicas ajuda a
compreender melhor o texto e achar o começo e o fim do raciocínio desenvolvido
naquela dada passagem.
A delimitação de perícopes não é um processo aleatório. Há critérios a serem observados na delimitação de textos bíblicos, como se seguem:
- Identifique o gênero literário presente (isso ajuda especialmente em textos como o dos evangelhos, quando, por exemplo, uma parábola é seguida por uma história);
- Identifique as mudanças de tempo (cronológicas), espaço, personagens e de assuntos que estão sendo abordados no texto em estudo;
- Identifique palavras que se repetem nos textos e podem indicar a unidade textual;
- Identifique palavras importantes nos textos que está delimitando – elas podem ser o eixo temático em torno do qual o autor está desenvolvendo o raciocínio. Exemplos: “sabedoria” em Provérbios e “circuncisão” em Gálatas;
- O anúncio do tema é outro elemento a ser identificado. Às vezes acontece do autor declarar explicitamente que vai passar a tratar de outro assunto, como vemos em 1 Coríntios 12.31: “Entretanto, busquem com dedicação os melhores dons. Passo agora a mostrar-lhes um caminho ainda mais excelente” (grifo meu).
5. GÊNEROS LITERÁRIOS PRESENTES NO TEXTO BÍBLICO
A Bíblia é um livro que reúne
em si diversos gêneros literários e parece que as vezes somos tentados a
sacralizar uns e dar menos importância a outros. Todavia, eles refletem as
culturas nas quais a Bíblia foi escrita e dão ao texto elevada riqueza literária
e de estilo. Neste sentido, a Bíblia é belíssima.
O desconhecimento desses gêneros literários, com suas nuances e características próprias, pode provocar sérios problemas relacionados à interpretação dos textos bíblicos. Como exemplo, podemos citar a maneira como as pessoas interpretam o gênero apocalíptico. A própria palavra “Apocalipse” é muitas vezes usada como sinônimo de fim, de desesperança, destruição e tragédia. O cinema hollywoodiano refletiu justamente esta ideia em diversos de seus filmes.
O fato é que o gênero apocalíptico, presente na Bíblia nos livros de Daniel (para o Antigo Testamento) e Apocalipse (para o Novo
Testamento) indica justamente uma mensagem de conforto e esperança em meio a um
caos em que o vidente está inserido, bem como a comunidade de fé à qual ele
escreve. Sua mensagem apocalíptica está, na verdade, trazendo esperança e
consolo para seus leitores. Revela o controle absoluto e soberano de Deus sobre
os governos humanos e o Seu cuidado protetor com a humanidade.
Em linhas gerais, os
principais gêneros literários encontrados na Bíblia são os seguintes: História, Poesia,
Apocalíptica, Profecia, Evangelhos e Epístolas. Surge então uma importante
pergunta: quando consideramos os gêneros literários da Bíblia e o ambiente
histórico que refletem, como separar aquilo que é contextual daquilo que é
aplicável a nós hoje?[30] Como resposta possível a esta questão,
consideremos algumas questões partindo do gênero epistolar (o gênero das epístolas do Novo Testamento). De fato, é um
desafio ao hermeneuta separar o que é específico, local, cultural e temporal em
um texto epistolar daquilo que perpassa esses limites e pode ser aplicado em
nossos dias. Pensar nesta questão deve remeter-nos ao que tencionava o autor
bíblico quando escreveu aquele determinado texto e o mais importante: “Quais as
implicações desse significado para nós, hoje, no século 21”. Esta questão é
importantíssima tendo em vista que os textos epistolares se dão em
contextos específicos e que a nossa cultura, atualmente, é pluralista,
diversificada e relativista. É inegável que há certos pontos de tensão e choque entre a cosmovisão pós-moderna
e a cosmovisão bíblica, refletida nesses textos do Novo Testamento.[31]
CONCLUSÃO
Tal discussão é muito importante no trabalho da exegese bíblica e é com ela que concluo este breve texto, lembrando ao leitor que um dos mais importantes papeis da Exegese Bíblica é buscar a compreensão original de um texto bíblico tendo em vista sua aplicação para as nossas vidas, hoje, na contemporaneidade. É assim que a Exegese Bíblica vem sendo praticada ao longo de décadas, por exegetas de diversas tradições cristãs (pentecostal, tradicional, reformada, católica, etc.).
Penso que se a exegese de uma perícope bíblica não culminar com possibilidades de ensino, instrução, inspiração, edificação, correção e consolo, que são possibilidades de aplicação da mensagem bíblica, ela se reduzirá uma espécie de "arqueologia do texto", não no sentido foucaultiano da expressão, mas no sentido de que o texto bíblico se torna mera peça literária a ser analisada sem qualquer relevância para a vida, hoje. Mesmo que esse tipo de análise possua seu valor, não tem sido esse o interesse da Exegese Bíblica ao longo do tempo.
[1]
LAMELAS, Isidro Pereira. Exegese do Novo
Testamento: um guia básico para o estudo do texto bíblico. Lisboa,
Portugal: Alcalá - Sociedade Bíblica de Portugal, 2004, p. 45.
[2]
GIRALDI, Luiz Antonio. História da
Bíblia no Brasil. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008, p.
11.
[3]
Estou convencido de que, no caso da Bíblia, nem sempre isto será possível em
função dos distanciamentos e outras limitações ao trabalho exegético. Mas estou
certo de que a Exegese possibilita sempre uma aproximação responsável ao texto
bíblico, que o honre, mesmo em casos assim.
[4] WEGNER, 2012,
p. 21.
[5]
Em Hermenêutica, estuda-se os diversos tipos de distanciamentos presentes no
texto bíblico: cultural, histórico, linguístico, autoral, dentre outros. Mas
não abordaremos tal assunto por não ser esse o objetivo da presente matéria,
aqui abordada.
[6] A partir daqui
usarei, por questões de praticidade, as siglas MHC para Método
Histórico-Crítico e MHG para Método Histórico Gramatical.
[7] Importante
considerar que não há também unanimidade entre os teólogos quanto ao uso
destes termos e nem quanto ao uso dos referidos métodos. Augustus Nicodemus o
chama de “Gramático-Histórico”, ao passo que o teólogo Osvaldo Luiz Ribeiro, em
uma resenha, o chama de “Histórico-Gramatical” e o critica, preferindo o método
Histórico-Crítico. Wegner também declara optar pelo método Histórico-Crítico e
chega a afirmar que quando se trata de uma leitura diacrônica esse é o método
mais usado (cf. Wegner, 2012, p. 30). O texto da resenha está disponível em
<http://www.ouviroevento.pro.br/diversos/resenha_de_Nicodemus.htm> Acesso
em 14 set. 2015. Nossa abordagem aqui opta pelo título “Histórico-Gramatical” e
por ele se pauta no trabalho exegético, sem desprezar, contudo, as
contribuições do método Histórico-Crítico. Como Wegner, reconhecemos vantagens
e desvantagens em ambos os métodos.
[8] WEGNER, 2012, p. 26.
[9] WEGNER, 2012, p. 27.
[10] DICK, Elmer. Hermenêutica:
uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo:
Shedd Publicações, 2012, p. 14.
[11] WEGNER, 2012, p. 30.
[12] Revista Fides Reformata X. nº 1 (2005):
115-138. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_X__2005__1/augustus.pdf>
Acesso em 15/09/2015.
[13] WEGNER, 2012, p. 31.
[14] WEGNER, 2012, p. 33.
[15] LOPES, Augustus Nicodemus. Disponível em
<http://tempora-mores.blogspot.com.br/2006/06/por-que-prefiro-o-mtodo-gramtico.html>
Acesso em 15 set. 2015.
[16] FEE, Gordon D.
A história como context para a interpretação in: DICK, Elmer. Hermenêutica: uma abordagem
multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2012, p.
12.
[17] GEISLER. HOWE, 1999, p. 13.
[18] GEISLER, Norman L. NIX, Willian. Introdução
Bíblica: como a Bíblia chegou até nós. São Paulo: Vida, 2003, p. 184.
[19] BARNWELL,
Katharine. Tradução bíblica: um curso
introdutório aos princípios básicos de tradução. 3ª ed. Barueri, SP:
Sociedade Bíblica do Brasil; Anápolis, GO: Associação Internacional de
Linguística, 2011, p. 10.
[20] Willian Tyndale, escrevendo a uma
autoridade desconhecida, expressando sua intenção de prosseguir com seu
trabalho de tradução da Bíblia.
[21]
Ecdótica é outro nome dado à Crítica Textual.
[22] PAROSCHI,
Wilson. Crítica Textual do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993. p. 14.
[23] PAROSCHI,
1993, p. 15.
[24] GEISLER,
Norman. Enciclopédia de Apologética.
São Paulo: Vida, 2002, p. 113.
[25] Cf.:
SCHWERTLEY, Brian. A Historicidade de
Adão. Disponível em:
<http://www.monergismo.com/textos/criacao/historicidade_adao_schwertley.pdf>
Acesso em 17 abr. 2015.
[26] Disponível em
<http://www.ouviroevento.pro.br/index/por_que_ouviroevento.htm> Acesso em
18 abr. 2015.
[27] GEISLER,
Norman. Enciclopédia de Apologética.
São Paulo: Vida, 2002, p. 113.
[28] TENNEY,
Merrill C (org.). Enciclopédia da
Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 892.
[29]
Guardando-se as devidas proporções, é claro. O parágrafo é citado aqui apenas
para fins de comparação útil.
[30]
Confira os artigos Hermenêutica bíblica e
Epístolas, A questão contextual das.
[31]
No artigo Epístolas, A questão
contextual das., constam alguns passos que devem ser dados para que se
identifique o que é contextual e o que não é.
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