segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Rudolf Karl Bultmann: Teologia, contribuições e crítica possível ao seu pensamento

Por Roney Cozzer

(FONTE: COZZER, Roney R. Doutrinas bíblicas. Instituto Teológico Quadrangular, 2019 [obra não publicada]).


Chegamos agora a mais um dos grandes pensadores cristãos do século 20. E esse é um pensador também muito criticado no contexto evangélico, mas isso se dá certamente, em grande medida, por desconhecimento da obra desse importante pensador. Rudolf Karl Bultmann estudou profundamente o contexto ou cenário que dá origem ao Novo Testamento, mas fazendo isso sem desconectar-se da sua própria realidade no século 20. Deve ser destacado já de partida que Bultmann não foi um teólogo sistemático, mas deve ser entendido – e com justiça – como um teólogo bíblico, que se dedicou de fato aos estudos em torno do Novo Testamento.
Bultmann nasceu na Alemanha, em 20 de agosto de 1884, e faleceu em 1976, aos 91 anos. Foi catedrático da Universidade de Marburg, na Alemanha, durante muitos anos (de 1921 até 1951 quando se aposentou) e produziu diversos textos de cunho histórico, teológico e interpretativos sobre o Novo Testamento. Marburg foi a universidade onde ele lecionou até o fim da vida em 1976 e ele a via como sua pátria acadêmica.
Um fato interessante a respeito da vida e obra de Bultmann, é que ele fez parte da assim chamada Igreja Confessante, composta por teólogos igualmente destacados como o suíço Karl Barth (1886-1968), que rejeitaram e se opuseram ao nazismo.[1] Bultmann estudou nas melhores universidades alemãs: Tübingen, Berlim e Marburg e era herdeiro de uma rica tradição protestante.[2] Dentre as obras que produziu destacam-se Jesus (1926), Novo Testamento e mitologia (1941), Teologia do Novo Testamento (1948-53) e Religião sem mito (1954). 
Uma ponderação importante aqui: é fundamental ao estudante de Teologia adotar em sua vida de estudos aquele que foi um dos lemas da Reforma Protestante: ad fontes. É preciso ir “às fontes”, ou “voltar às fontes”. Os intérpretes são necessários, os interpretados mais ainda! É incoerente nos apegarmos apenas às interpretações sobre esse ou aquele teólogo sem “consultá-lo” por meio de suas obras. As interpretações cumprem um papel muito importante, seja no sentido de preservação/manutenção do pensamento de determinado teólogo, seja no sentido de nos ajudar na compreensão de sua obra. Todavia, mais importante que isso é recorrer ao próprio teólogo lendo os textos de sua autoria.
É importante destacar ainda que, por mais que se reconheça as contribuições notáveis de Bultmann e de outros grandes teólogos cristãos (contemporâneos ou não) para a reflexão teológica, tal reconhecimento não precisa significar endosso absoluto da integralidade de sua obra. Não é diferente aqui com relação ao pensamento bultmanniano. Como cristãos confessos e cheios de fé, discordamos radicalmente de alguns resultados do trabalho de Bultmann, como alguns vistos em seu programa de desmitologização do Novo Testamento que culmina na compreensão de que a ressurreição de Jesus se reduz a um mito, e não a um fato concreto na História.
O pensamento de Rudolf Bultmann é devedor, em grande medida, ao existencialismo do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual, inclusive, foi colega e chegou a trocar correspondências. Bultmann entendeu que a mensagem do Novo Testamento, um documento muito antigo, é sim Palavra de Deus, mas que pode ser comunicada ao homem em termos existenciais, numa resposta de fé individual.

[...] ele se recusava a reconhecer qualquer disparidade profunda entre a exegese e a teologia sistemática, afirmando que, na verdade, a tarefa de ambas é explicar a existência humana em relação a Deus ao ouvir a Palavra de Deus, que se dirige ao indivíduo por meio do Novo Testamento. Por causa de sua contribuição a essa questão mais ampla do método teológico, Bultmann tem sido uma voz insuperável no meio da teologia sistemática bem como dos estudos do Novo Testamento.[3]

No senso comum de muitos evangélicos brasileiros, Bultmann tem sido considerado um teólogo liberal. O curioso, contudo, é que o próprio Bultmann se considerou um aliado de Barth no sentido de dar uma resposta ao liberalismo teológico em seu tempo. Sua crença é de que a revelação, o kerigma, é suficiente para o conhecimento de Deus. “[...] Seguindo as ideias do filósofo existencialista Martin Heidegger, Bultmann interpretou essa mensagem exclusivamente em termos de condição humana que ele via caracterizada pela ansiedade e até mesmo pelo desespero”.[4] É correto afirmar sobre ele que seu esforço foi no sentido de projetar a sua visão cristã através do existencialismo.
Bultmann se apropriou do existencialismo para construir sua teologia. Nesse sentido, pode ser afirmado que ele foi além de Karl Barth, já que Barth concentrou sua teologia na Pessoa de Jesus. Bultmann entendeu que o existencialismo lhe permitia transmitir de modo mais adequado a relação fundamental entre Deus e o homem. Mas existe também a ideia de que ele teria escolhido o existencialismo por questões hermenêuticas, de modo que ele procurava entender os textos neotestamentários sem interferências de outros conceitos conhecidos, sendo a existência humana o único princípio hermenêutico adequado.[5] O existencialismo foi visto como uma forma eficaz de lidar com alguns problemas que se levantavam na pesquisa do Novo Testamento, como por exemplo o Jesus histórico e a mitologia.

[...] o seu ponto de partida se encontra claramente na questão levantada pela neo-ortodoxia como um todo sobre como Deus se dirige à humanidade nos dias de hoje. A resposta de Bultmann empregou o conceito de existência humana, que ele encontrou tanto no próprio Novo Testamento quanto na filosofia existencialista. Deus se dirige a partir de sua transcendência como Outro Ser e a Palavra divina pede uma resposta radical que implica mudança de vida. Assim, a teologia que, por definição, é o discurso sobre Deus, não pode deixar de falar, ao mesmo tempo, da existência humana.[6]

Bultmann percebeu no existencialismo um caminho para compreender o Novo Testamento, em função da ontologia apresentada pelo existencialismo. Cumpre ressaltar que Bultmann não se preocupou em impor as explicações de Heidegger ao Novo Testamento. Eles encararam o existencialismo sob prismas diferentes. Bultmann, crente; Heidegger, incrédulo (quanto à fé). Bultmann está, em seu tempo, procurando tornar relevante a mensagem do Evangelho ao homem contemporâneo, da Modernidade, já acostumado com avançadas tecnologias e que não mais se inclina a mitos.
Bultmann encontrou um modo eficiente de conciliar conceitos do pensamento heideggeriano e o seu próprio pensamento. Ele estabeleceu alguns paralelos entre conceitos da obra de Heidegger e conceitos bíblicos, como por exemplo, fé e pecado com “existência autêntica” e “existência inautêntica”. E esse esforço se dá em Bultmann por ele estar buscando explicar a mensagem do Evangelho em seu próprio contexto, isto é, em sua própria época. Havia um desencontro entre o homem moderno e o homem do período do Novo Testamento, em que a concepção do universo é mítica. Bultmann mantêm seu inelutável interesse em chegar ao cerne da mensagem do Novo Testamento removendo as camadas mitológicas que a cobrem e poder assim comunicar essa mensagem ao homem contemporâneo.
A existência autêntica de Heidegger só é possível, segundo Bultmann, mediante a resposta do homem por meio da fé à graça de Deus, oferecida ao homem pela proclamação cristã (o kerigma). E essa resposta do homem constitui em si um milagre de Deus. Noutras palavras, o homem não pode por si mesmo experimentar essa existência autêntica; ele depende da graça de Deus experimentada por um ato de fé.
O sentido da ressurreição para Bultmann não é em termos factuais, históricos. O entendimento de Bultmann do significado da História é em termos de geschichtlich, isto é, “acontecimentos presentes”. É claro que tal compreensão representa um grave problema para o Cristianismo bíblico histórico, que está estruturado sobre a convicção essencial de que Jesus ressuscitou factualmente dentre os mortos, ou ainda, dito de outra forma: a ressurreição se dá de modo objetivo num ponto da História humana. Para Bultmann, contudo:

[...] O que importa é o sentido da cruz e da ressurreição, ou seja, o significado contínuo que possuem como Palavra de Deus dirigida aos indivíduos dos nossos dias. Ao respondermos ao kerigma, a cruz e a ressurreição se tornam nossa experiência pessoal.[7]

Isso não significa dizer que Bultmann não aceitasse a pessoa de Jesus e sua cruz como fatos históricos. Ele não considerou que um homem realmente tivesse voltado dentre os mortos, mas cria na existência real de Jesus e que Ele veio a morrer numa cruz. Para Bultmann, foi justamente a crucificação que exaltou Jesus à posição de Senhor. Para ele, a fé na ressurreição implicava “[...] fé na eficácia salvadora da cruz”.[8]
O pensamento de Bultmann, evidentemente, deve ser criticado. Ele possui limites sérios. A despeito de suas contribuições, não podemos negar que esse grande pensador caminhou para certo ceticismo no que tange à fé histórica do Cristianismo quanto a milagres, a ressurreição e outras narrativas de fatos sobrenaturais das Escrituras, que ele entendeu como sendo mitos.
O conservadorismo teológico prossegue em ver a obra de Bultmann com suspeição e com certa justiça, em função da sua compreensão a respeito de mito e Bíblia. E não pode ser negado que sua visão diferiu substancialmente da visão tradicional, inclusive quanto à Revelação de Deus à humanidade.
Grenz e Olson (2013) irão afirmar que “independentemente da questão das formulações doutrinárias corretas e das críticas relacionadas a vários aspectos de suas posições, o principal problema teológico está no centro da proposta de Bultmann”.[9] Os autores prosseguem dizendo que esse problema irá se tornar evidente em pelo menos três pontos fracos no pensamento bultmanniano: exegese, vida de fé e a natureza de Deus.
No que tange ao primeiro ponto, exegese, percebe-se que Bultmann caminhou para a construção de uma exegese que Grenz e Olson (2013) chamam de unilateral. Por mais que o existencialismo heideggeriano pudesse ser aplicado de modo positivo para o entendimento do evangelho, isso pode representar uma forma de “anacronismo exegético”. Grenz e Olson (2013) afirmam acertadamente: “[...] Muitos textos [do Novo Testamento] não tratam de questões existenciais como insiste a formulação de Bultmann, mas de outros temas”.[10] A desconexão que esse pensador alemão acabou por estabelecer entre os dogmas de fé e a historicidade, que serviu de base para sua formulação, acabou conduzindo a uma desvalorização equivocada da historicidade. Deve ser lembrando que nossa fé depende, de certo modo, de fatos narrados pelo Novo Testamento, que se deram como fatos históricos e sim, de modo objetivo.
Outro ponto fraco no pensamento de Bultmann é com relação à vida de fé. Para ele, “[...] a fé é uma decisão pessoal sobre o viver autêntico, compreendida de modo extremamente individualizado”.[11] Seguindo na trilha da compreensão existencialista, ele acabou por limitar muito ao individual a esfera de ação da fé reduzindo assim sua dimensão eclesial, comunitária e social. A fé, em termos neotestamentários, tem implicações que transbordam à própria esfera do individual, no cristão. Ela possui implicações abrangentes projetando o cristão para o outro.

Do mesmo modo, não é sem importância o fato de que seus escritos raramente falem da igreja. Do ponto de vista de avanços teológicos subsequentes, podemos concluir apenas que a teologia de Bultmann fornece uma soteriologia útil, ainda que parcial, mas carece de uma eclesiologia satisfatória.[12]

Em um texto publicado originalmente em 1958, e intitulado Das Befremdiliche des christlichem Glaubens, traduzido como “Por que a fé cristã causa estranheza”[13], Bultmann discorre sobre o sentido do Cristianismo, sobre o significado do Cristianismo e conclui em dado momento que “[...] cada qual precisa decidir para si próprio o que é fé cristã”.[14] Ele argumenta logo em seguida que o que vem a ser Cristianismo não necessariamente fica restrito à subjetividade do indivíduo, mas que a explicação sobre o que vem a ser o Cristianismo pode ser feita mediante o conhecimento da história, não história como fatos frios que se sobrepõem, mas sim, e em suas próprias palavras, “o dilema resolve-se se considerarmos o que é autêntica relação com a história, ou seja, o que é relação histórica com a história”.[15] “História” em Bultmann assume um sentido diferente do sentido ordinário que conhecemos. Para ele, ela requer envolvimento, e ele afirma que o historiador tem a sua própria subjetividade envolvida levando-o a participar como pessoa.[16] Só havendo esse envolvimento o sujeito pode compreender os eventos ocorridos na própria História. É após essa conjuntura existencial do sujeito que ele pode compreender seu sentido histórico. Dito isto, Bultmann então lança o problema: “Qual a consequência disso para a pergunta pela essência da fé cristã?” e em seguida, ele mesmo responde: “Ela somente é reconhecível a partir da história do cristianismo, mas só para aquele que estiver existencialmente envolvido nesta história”.[17] Bultmann está deslocando o Cristianismo do conceito de um evento ocorrido na História para a posição de algo contínuo, que retroage e que é escatológico. A despeito de reconhecer que Jesus Cristo inaugurou uma nova era, deixando o velho éon para trás e inaugurando uma nova era, tudo isso permanece atrelado ao existencialismo, que ele usa como “trilho” por onde corre o “trem” da sua Teologia.
Seguindo nesse raciocínio, pode ser mencionado aqui o terceiro aspecto da teologia de Bultmann, criticado por Grenz e Olson (2013), que eles definem como “um Deus limitado”. Os autores irão comentar que a insistência de Bultmann em discutir Deus nesse trilho do existencialismo acabou por “condicioná-lo” demais, infligindo assim a transcendência de Deus. Com efeito, tradicionalmente, o Cristianismo entende que Deus é transcendente, ainda que imanente, e que se relaciona com os homens, “vindo” ao seu encontro por meio da Revelação, seja em Cristo, a Palavra viva, seja por meio da Bíblia, a Palavra escrita.
Ainda que Bultmann insista que o paradoxo da fé cristã consista justamente em que o evento histórico-factual Jesus Cristo não deva ser entendido como evento passado, mas sempre presente[18], ainda assim ele o faz condicionando tal conceito à existencialidade subjetiva do indivíduo. Não que Bultmann tenha negligenciado a transcendência, como bem observam Grenz e Olson (2013):

A intenção do estudioso alemão é louvável. Diante da teologia imanente do liberalismo, ele assumiu a posição correta de elevar Deus à posição de ser Transcendente, o Outro Ser que está sobre todos os indivíduos humanos e além de todos eles. Porém, Bultmann se equivocou quando afirmou que esse Deus só pode ser conhecido na medida em que ele age dentro de mim, ou seja, na medida em que ele cria a existência autêntica, de modo que a teologia se torna a reflexão sobre a experiência do encontro, que leva à existência autêntica. Seria incorreto dizer que, com isso, Bultmann reduziu a teologia a uma forma de antropologia, uma acusação que ele mesmo rejeitou, mas sua abordagem significa que não se pode afirmar nada sobre Deus sem que ao mesmo tempo se fale do ser humano.[19]

Quando Bultmann afirma que só podemos falar de Deus em termos existenciais, caminhando para uma espécie de ontologia-teológica-existencial, ele acaba por reduzir a natureza eterna e transcendental de Deus, apresentando-nos um Deus que difere substancialmente das Escrituras. Nota-se que no esforço de tornar Deus “acessível” aos seus contemporâneos, alguns teólogos do século 20 acabaram indo longe demais. Bultmann valoriza o aspecto presente do fato histórico Jesus, mas sempre em relação ao modo como Ele interage com os homens. A Bíblia, contudo, nos permite perceber que Deus está para muito além da fé individual, não estando condicionado à ela. Deus não pode em qualquer hipótese ser “confinado” e “circunscrito” ao mundo pessoal do sujeito pensante. O próprio conceito teológico de “revelação” sinaliza justamente que é o sujeito que pode vir a conhecer esse Outro que até então lhe é desconhecido, mas dado a conhecer aos homens (cf.: Tt 2.11; Ef 3.3; 1 Pe 1.20). Como bem observam Grenz e Olson (2013), “[...] são cada vez mais evidentes os perigos de uma teologia que confina Deus ao universo da crença pessoal”.[20] Em Bultmann, não podemos negar, a Transcendência divina fica comprometida de certo modo e coloca-se diante do homem contemporâneo um Deus que é limitado.

Bultmann: mito, milagres e a ressurreição

Finalmente, concluindo este tópico sobre o pensamento de Bultmann, ofereço ainda uma crítica possível ao seu conceito de mito aplicado aos milagres e a outros fatos sobrenaturais narrados no Novo Testamento. Ainda que “mito” em Bultmann não tenha o sentido que o senso popular lhe atribui, ainda assim, ele é basicamente a negação de uma ação interventora sobrenatural na existência humana. Ele entendeu que os mitos foram “cascas” ou “camadas” que cobriram o cerne da mensagem do evangelho e que precisavam ser removidas para que essa mensagem fosse realmente entendida e comunicada ao homem com uma mentalidade moderna. Com isso, milagres, possessões demoníacas e claro, a ressurreição de Jesus, não poderiam ser encarados como fatos históricos. Como afirmado anteriormente, ele aceitou a cruz como um evento histórico concreto, mas entendeu a ressurreição como mito:

O paradoxo está justamente em que um evento histórico-fatual é o evento escatológico: o ir e vir de Jesus, a sua cruz! Será que também deveria dizer: a sua ressurreição? Não! Pois a sua ressurreição não é um evento histórico-fatual. Como evento histórico-fatual somente pode ser designada a fé dos primeiros discípulos em sua ressurreição.[21]

É minimamente curioso que ele acreditasse que os discípulos acreditaram sem acreditar no que eles acreditaram![22] E claro, não é problema algum crer que outros creram, sem assentir ao conteúdo da sua crença. Mas no caso do Cristianismo e da proposta de Bultmann, em particular, isso representa sim um problema, visto que ele lança alicerces num terreno para nele construir um edifício teológico na mesma medida em que indica instabilidades nesse mesmo terreno. Norman Geisler (2002) comenta o seguinte:

[...] Bultmann sequer abriu espaço para considerar a pressuposição de que a descrição bíblica de milagres é possível. Tal teoria não podia mais ser levada a sério. A única maneira honesta de recitar os credos era despir a verdade da estrutura mitológica que a circunda.[23]

Para o nosso teólogo alemão, a ressurreição é na verdade um evento da fé ocorrido no coração dos discípulos. Bultmann se afasta de qualquer interesse no sentido de encontrar qualquer historicidade na ressurreição de um cadáver. Ele entende que Jesus reviveu sim, mas apenas no coração dos discípulos. A ressurreição é, pois, um evento subjetivo no pensamento de Bultmann.
Conquanto seja muito valiosa a contribuição de Bultmann no sentido de procurar demonstrar que a ressurreição perpassa, de certo modo, ou por que não dizer, sobrepuja a própria História, Geisler, contudo, chama a atenção para um fato importante: “Milagres não são menos que históricos. Não se deve concluir que, pelo fato de um evento ser mais que histórico, ele deva ser menos que histórico”.[24] Bultmann está propondo uma dissociação desnecessária, dissociação, inclusive, que não é feita pelos próprios autores neotestamentários. Repare no “grande capítulo da ressurreição” (1 Coríntios 15) que Paulo de fato trata a ressurreição em termos históricos.[25] Não se pode deixar de reconhecer que embora brilhante, Bultmann acabou caminhando para um antisobrenaturalismo injustificado, e infundado. Com efeito, nem mesmo o grande pensador alemão isentou-se do preconceito típico do ceticismo iluminista que supervalorizou a razão e o empirismo.[26]




[1] Bultmann não chegou a ser forçado a deixar sua cadeira na Universidade de Marburg durante o regime ditatorial de Hitler, como havia acontecido com vários colegas seus, possivelmente, por ele não ter se envolvido com atividades políticas.
[2] GRENZ, Stanley J. OLSON, Roger E. A Teologia do século 20 e os anos críticos do século 21: Deus e o mundo numa era líquida. Trad.: Susana Klassen. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 100.
[3] GRENZ. OLSON, 2013, p. 100.
[4] GRENZ. OLSON, 2013, p. 100.
[5] GRENZ. OLSON, 2013, p. 107.
[6] GRENZ. OLSON, 2013, p. 108.
[7] GRENZ. OLSON, 2013, p. 111.
[8] GRENZ. OLSON, 2013, p. 111.
[9] GRENZ. OLSON, 2013, p. 112.
[10] GRENZ. OLSON, 2013, p. 112,13.
[11] GRENZ. OLSON, 2013, p. 113.
[12] GRENZ. OLSON, 2013, p. 113.
[13] BULTMANN, Rudolf. Crer e compreender: ensaios selecionados, ed. rev. ampl. Trad.: Walter Schlupp. Walter Altmann. Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2001, p. 383ss.
[14] BULTMANN, 2001, pp. 385,86.
[15] BULTMANN, 2001, p. 386.
[16] BULTMANN, 2001, p. 386.
[17] BULTMANN, 2001, p. 387.
[18] BULTMANN, 2001, p. 391.
[19] GRENZ. OLSON, 2013, p. 114.
[20] GRENZ. OLSON, 2013, p. 115.
[21] BULTMANN, 2001, p. 390. Noutra obra ele afirma o seguinte: “Obviamente [a ressurreição] não é um evento da história passada [...] Um fato histórico que envolve a ressurreição dos mortos é totalmente inconcebível” (BULTMANN, Kerygma and myth: a theological debate apud: GEISLER, Norman L. Enciclopédia de Apologética. Trad.: Lailah de Noronha. São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 583).
[22] Sobre a ressurreição de Jesus, ele escreveu: “Não se nega que a ressurreição de Jesus seja muitas vezes usada no Novo Testamento como uma prova miraculosa [...] Tanto a lenda do túmulo vazio quanto as aparições insistem na realidade física do corpo ressurreto do Senhor” (BULTMANN apud: GEISLER, 2002, p. 583).
[23] GEISLER, Norman L. Enciclopédia de Apologética. Trad.: Lailah de Noronha. São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 582.
[24] GEISLER, 2002. p. 582.
[25] Com efeito, no pensamento paulino, se o cadáver de Jesus fosse apresentado, a crença na ressurreição cairia, e bem possivelmente o Cristianismo!
[26] Geisler comenta: “A base do antisobrenaturalismo de Bultmann não é evidencial nem está aberta a discussão. É algo que ele defende “não importa quantas testemunhas sejam citadas” [...]. O dogmatismo de sua linguagem é revelador. Milagres são “inacreditáveis”, “irracionais”, “realmente impossíveis”, “sem sentido”, “totalmente inconcebíveis”. Logo, a “única alternativa honesta” para as pessoas modernas é afirmar que milagres são espirituais e que o mundo físico está imune à interferência sobrenatural” (BULTMANN apud GEISLER, 2002, p. 583).

domingo, 13 de agosto de 2023

Francis A. Schaeffer: vida, obra e crítica possível ao seu pensamento ✒️

Imagem: Francis A. Schaeffer (1912-1984)
Fonte: Quem foi Francis Schaeffer? Cruciforme. [Site]. Disponível em: <https://cruciforme.com.br/quem-foi-francis-schaeffer/>. Acesso em 13 ago. 2023.


Por Roney Cozzer, doutorando em Teologia Sistemático-Pastoral (PUC Rio) e licenciando em História (Faculdade Católica Paulista).

Fonte: COZZER, Roney R. Doutrinas Bíblicas. Instituto Teológico Quadrangular [obra não publicada]. O texto foi revisado e contou com algumas leves inserções em 13 de agosto de 2023, quando da sua postagem aqui.


Vida e obra de Francis A. Schaeffer

Francis August Schaeffer foi, muito provavelmente, um dos teólogos mais brilhantes do século 20. Esta afirmação pode parecer exagero a princípio, mas quando nos debruçamos sobre sua obra logo percebemos que se trata de uma conclusão justa. Sempre muito lembrado no campo da Apologética, Schaeffer se colocou como uma das vozes teológicas mais conservadoras de seu tempo. 

No Brasil, várias obras suas foram traduzidas e continuam sendo publicadas. Um livro pequeno de Schaeffer, mas que se coloca como uma das obras que mais marcou o contexto protestante no século 20, foi A morte da razão. Mas há outras obras do pensador cristão norte-americano.

Schaeffer teria completado 100 anos de idade em 2012 caso estivesse vivo. Ele nasceu em 1912, em 30 de janeiro daquele ano e veio a falecer em 1984. Oriundo de uma família secularizada, em Germantown, na Pennsylvania. A mundialmente conhecida Revista Times o descreveu como o “Apóstolo dos intelectuais” em 11 de janeiro de 1960 (CARVALHO, Guilherme de. Francis Schaeffer para o século 21. Disponível em: <https://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/02/08/francis-schaeffer-para-o-seculo-21/#more-161> Acesso em 26 ago. 2019).

O pensamento de Schaeffer, como é típico do pensamento dos grandes intelectuais da Teologia, provoca reações críticas também, e não apenas admiração. Guilherme de Carvalho comenta: "Estou com os que consideram Schaeffer crucial para a igreja evangélica brasileira no século XXI, e não se trata de provocação saudosista; na verdade eu mesmo não pertenço à geração de Schaeffer, nem às gerações imediatamente posteriores. Eu acabei de chegar. Mas alguns dos primeiros leitores de Schaeffer, que reconheceram sua atualidade – há quarenta, trinta, vinte anos atrás – agora estão certos de que Schaeffer é passado. “Schaeffer descrevia uma condição ainda moderna, superada pela Pós- Modernidade”, já ouvi. Alega-se que sua ênfase na “verdade verdadeira” (true truth) denuncia uma visão racionalista da revelação, que ele seria biblicista, que tentar misturar religião com tudo seria 'integrismo religioso'" (CARVALHO, Guilherme de. Francis Schaeffer para o século 21. Disponível em: <https://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/02/08/francis-schaeffer-para-o-seculo-21/#more-161> Acesso em 26 ago. 2019).

Schaeffer pastoreou igrejas na Pensilvânia e no Missouri, vindo depois a mudar-se para a Europa, atuando juntamente com sua esposa como missionários na Suíça, em 1948. Ele se casou em 26 de julho de 1935 com Edith Sevilha que mais tarde afirmaria que a razão de Schaeffer ter se preocupado tanto com a Bíblia foi pelo fato de que ele, ainda muito jovem, encontrou respostas para questões existenciais consultando diretamente a Bíblia (FERREIRA, Franklin. Francis Schaeffer: “levando cativo todo o pensamento”. Disponível em: <https://www.labri.org.br/francis-schaffer> Acesso em 26 ago. 2019).

Schaeffer foi o primeiro ministro ordenado pela Igreja Presbiteriana da Bíblia, e fez seus estudos no Faith Theological Seminary, conforme informa o historiador Justo L. González (GONZÁLEZ, 2008, p. 571). Um fato importante sobre a história de Francis Schaeffer é que ele, juntamente com sua esposa Edith, fundou o L’Arbri, em 1955. O L’Arbri, conforme explica González, trata-se de um “[...] centro de estudos teológicos para jovens universitários e outras pessoas em busca da relação entre a fé e o mundo secular” (GONZÁLEZ, 2008, p. 571). 

Uma das maiores contribuições de Schaeffer foi em relação à posição das Escrituras: ele a defendeu, num profundo comprometimento com ela, apontando-a como Palavra inspirada de Deus, como a revelação de Deus à humanidade. Ao lermos as obras de Schaeffer, de algum modo encontramos refletida nelas a busca do autor pelo sentido real da existência, que ele encontrou em Deus. Essa verdade, essa revelação de Deus, que dá sentido à existência humana, precisa ser comunicada ao mundo. Não se trata de apenas confessar a fé cristã. A Igreja precisa transbordar a simples confissão; ela deve se preocupar em comunicar, de maneira eficaz, as verdades da fé cristã a um mundo marcado pelo desespero.

Outra contribuição fundamental da obra de Schaeffer para a Igreja, que de certo modo o torna sempre atual, é que a Igreja só será capaz de comunicar eficazmente o evangelho ao homem moderno se ela entender como ele pensa. É claro que Schaeffer está escrevendo para a Modernidade, um tempo com características diferentes do nosso tempo, a Pós-Modernidade. Todavia, a ideia de entender a época para então poder comunicar uma mensagem é, sem dúvida, uma percepção fantástica! Curiosamente, a Igreja na Pós-Modernidade continua cometendo esse erro básico enquanto sustenta discursos e doutrinas que não fazem o menor sentido ao indivíduo contemporâneo. 

O conhecimento da cultura contemporânea é um passo para que se possa comunicar o evangelho. Naturalmente, encarando a cultura humana pelas lentes da cosmovisão cristã, o entendimento será de que essa cultura está corrompida, caída, por causa do pecado. E a percepção de Schaeffer foi justamente esta. Uma obra fundamental de Schaeffer quanto à isto é A morte da razão que, aqui, servirá para nortear este excurso no pensamento do “apóstolo aos intelectuais”.

O livro Escape from reason, traduzido no Brasil como A morte da razão (Primeira edição em 1974), é uma obra que permite uma excelente introdução ao pensamento de Schaeffer e aqui a utilizo como norteadora para prosseguirmos no estudo sobre ele. É claro que apenas ler um livro de Francis Schaeffer, neste caso em particular, A morte da razão, não é suficiente para entender o conjunto da obra desse autor, mas como dito acima, é um bom a priori.

O livro está estruturado em sete capítulos e não se coloca como uma obra volumosa. Na verdade, chega mesmo a ser um livreto. Todavia, não se pode negar que seu impacto no mundo cristão ainda pode ser sentido em pleno século 21 (ainda que Schaeffer estivesse escrevendo para a Modernidade). No prefácio à obra, Schaeffer já dá a entender do que tratará no decurso das linhas que se seguirão: "Se alguém vai passar uma longa temporada no exterior, é de se esperar que aprenda a língua do país a que se destina. Mais do que isso, entretanto, faz-se necessário ele poder realmente comunicar-se com aqueles no meio dos quais viverá. Impõe-se-lhe aprender ainda outra língua – a das formas de pensamento das pessoas com quem falará. É somente assim que conseguirá real comunicação com elas e a elas. O mesmo se dá com a Igreja Cristã. Sua responsabilidade não é apenas professar os princípios básicos da fé cristã, à luz das Escrituras; cumpre-lhe comunicar estas verdades imutáveis à geração em que se situa" (SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. 4ª ed. São Paulo: Editora Fiel, 1986, p. 05).

O pensamento acima pode ser considerado uma espécie de “fio condutor” que guiará Schaeffer na construção dessa obra. É um pensamento recorrente e que funciona como base fundante da reflexão proposta por Schaeffer nesta e em outras de suas obras. E vale ressaltar ainda que Schaeffer está tentando comunicar um pensamento que, na verdade, reflete uma compreensão da realidade que o cerca e que envolve os cristãos. Sua obra tem, assim, um viés prático e não apenas teórico.

Schaeffer não foge à regra de outros grandes intelectuais do universo teológico no sentido de que estivessem buscando pontos de contato para comunicar o evangelho ao homem contemporâneo, à semelhança de Bultmann e Tillich. Talvez seja mais justo afirmar que, no caso de Schaeffer, ele o faz mantendo-se claramente dentro de uma tradição cristã conservadora, o que fica evidente pelas convicções que ele manifesta. 

Schaeffer defende a necessidade de se perceber as relações existentes entre Teologia, Filosofia e Arte. São produções humanas e mantêm certa correlação (SCHAEFFER, 1986, p. 10). Schaeffer propõe, já de partida, uma espécie de diagrama, elaborado para indicar a correlação entre graça e natureza e ele fala de uma espécie de “linha divisória” entre essas duas instâncias ou realidades. O que ele propõe é que a Arte, a Filosofia e a própria Teologia podem estar abaixo dessa linha – e estão, de fato, abaixo dessa linha muitas vezes.

Schaeffer irá apresentar essas mesmas bases conceituais também em outra obra importante, O Deus que intervém, onde recorre a vários dos princípios que ele formula em A morte da razão. Ele discorre sobre a autonomia que se estabelece em relação à graça. Noutras palavras, o que Schaeffer está tentando comunicar é que a natureza, que possui coisas belas, vai se afastando da graça de Deus num processo autônomo. Ele discorre em termos de “natureza versus graça” (“O princípio vital a notar-se é que, à medida que a natureza se fazia autônoma, passava a “devorar” a graça. Através da Renascença, de Dante a Miguel Ângelo, gradualmente a natureza se fez mais inteiramente autônoma. Ela libertou-se de Deus à medida que os filósofos humanistas começaram a operar cada vez mais à vontade. Quando a Renascença chegou ao seu clímax, a natureza havia devorado a graça” [SCHAEFFER, 1986, p. 11]).

Schaeffer, em A morte da razão (1986), parece indicar a morte da graça (e da razão) numa certa progressão histórica. E o faz indicando obras de arte pontuais e ele enxerga essa “morte” não apenas na Arte, mas também na Filosofia e na própria Teologia. Mais adiante, nesta mesma obra, irá discorrer sobre o cinema e a Televisão. No final desse livro, ele então fala da morte da racionalidade.

No capítulo de número dois da obra, Schaeffer menciona as Institutas de Calvino, escritas em 1536, e endereçadas a um monarca francês chamado Francisco 1. A Reforma Protestante contribuiu assim para que se resgatassem valores importantes para a fé cristã, como a dependência total do homem de Deus para sua salvação. ‘[...] Declararam os Reformadores que nada há que possa o homem fazer; nenhum esforço humano moral ou religioso, humanista ou autônomo pode ajudar. Somos salvos unicamente à base da obra consumada de Cristo, quando morreu no espaço e no tempo na história, e o único meio de obter a salvação é elevar as mãos vazias da fé e, pela graça de Deus, aceitar o dom gratuito de Deus – a Fé somente’ (SCHAEFFER, 1986, p. 19). 

Schaeffer entendeu que a moderna tendência na Teologia era não enfatizar a suficiência das Escrituras. Ele afirma que Deus se deu a conhecer ao homem através das Escrituras das quais podemos obter “conhecimento verdadeiro e unificado”, para falar em suas próprias palavras (SCHAEFFER, 1986, p. 20). Essa compreensão de Schaeffer pode ser bem percebida em sua fala no seu sermão intitulado O manifesto cristão (SCHAEFFER, Francis A. O manifesto cristão. [vídeo]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=108&v=2oG1VQ1HyvM> Acesso em 13 set. 2019). Em sua fala, ele afirma que diversos problemas que assolam a humanidade, como o aborto, pornografia, eutanásia, dentre outros, são resultados de uma mudança muito profunda de paradigma onde ganha espaço uma visão humanista em lugar de uma visão ou cosmovisão judaico-cristã.

Schaeffer afirma que Deus, por meio das Escrituras, nos diz quem é o homem é. Ele lança perguntas lancinantes: ‘Não podemos tratar as pessoas como seres humanos, não podemos vê-las no alto nível da verdadeira humanidade, a menos que conheçamos realmente a sua origem – quem são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus nos declara que Ele criou o homem à própria imagem. Portanto, o ser humano é algo maravilhoso.

Deus, entretanto, nos diz algo mais a respeito do homem – fala-nos acerca da Queda. Isto introduz o outro elemento que precisamos conhecer a fim de entendermos o ser humano. Por que é, a um tempo, criatura tão maravilhosa e tão degradada? Quem é o homem? Quem sou eu? Por que pode o homem realizar estas coisas que o fazem único, no entanto, por que é ele tão horrível? Por quê?’ (SCHAEFFER, 1986, p. 21).

Schaeffer destaca a realidade da queda do homem e de sua marcha para o Inferno em rebelião contra Deus. Salienta, todavia, que os reformadores obtiveram um conhecimento unificado a respeito da graça e da natureza, e da revelação de Deus. Noutras palavras, eles conseguiram uma espécie de unificação entre o “andar de cima” e o “andar de baixo”.

Ainda outro ponto que eu diria também fundamental no pensamento de Schaeffer é que ele sustenta, enfaticamente, que a Bíblia nos apresenta Deus como um Ser pessoal que procura relacionar-se com o homem. “[...] Este é o tipo de Deus que está “presente”, que existe. Ademais, este é o único sistema, a única religião, que aceita Deus com estas características. Os deuses orientais são infinitos por definição, na acepção de que a tudo abarcam – o bem tanto quanto o mal – contudo, não são pessoais” (SCHAEFFER, 1986, p. 24).

Schaeffer está contrastando a fé cristã bíblica e histórica com outras crenças no mundo e pode-se até mesmo afirmar, que de certo modo, com outros sistemas filosóficos, a fim de realçar a verdade cristã a respeito do evangelho de Cristo (Ainda que este esforço encontre limites até certo ponto, muito claros, como procuraremos indicar adiante). E nesse esforço ele insiste que o homem foi criado um ser pessoal, sendo finito, mas que pode relacionar-se com o Deus que também é pessoal, mas infinito. Ele afirma: “Não somos infinitos, somos finitos; não obstante, somos plenamente pessoais, somos feitos à imagem do Deus pessoal que existe” (SCHAEFFER, 1986, p. 26).

Como podemos perceber, o pensamento de Schaeffer tem como “viga mestra” a ideia de que sem Deus, o mundo não faz sentido, a vida humana não faz sentido e a Filosofia não cristã não consegue responder eficazmente aos grandes dilemas da vida. Schaeffer foi muito influenciado pelo apologista cristão proposicional Cornélius Van Til. O teólogo brasileiro Franklin Ferreira comenta o seguinte: ‘Cornélius Van Til foi o grande responsável pela tentativa de mudar o foco do debate com pensadores não-cristãos sobre a existência de Deus e a validade das reinvindicações cristãs, focalizando-o na viabilidade e na coerência das posições não-cristãs. Ele argumentou que o pensamento não-cristão não passa de uma tentativa de fugir de Deus. Van Til era um apologista proposicional. Essa abordagem reconhece que nenhum fato, histórico ou não, pode ser interpretado de maneira coerente sem pressupor a fé no Deus trino – infinito e pessoal –, como revelado na Escritura’ (FERREIRA, Franklin. Francis Schaeffer: “levando cativo todo o pensamento”. Disponível em: <https://www.labri.org.br/francis-schaffer> Acesso em 26 ago. 2019).

O pressuposto básico de Van Til (e de Schaeffer) é que o nosso pensamento seja modelado pelos pressupostos básicos das Escrituras. Nosso entendimento da mensagem das Escrituras depende dessa submissão. Schaeffer entendia a necessidade de interpretar o mundo e a vida a partir de uma cosmovisão, e defendeu que a cosmovisão adequada era a cristã. Ferreira afirma que Schaeffer “[...] acreditava que as pessoas procuravam uma fuga da razão. Como consequência, todas as cosmovisões não-cristãs são incoerentes” (FERREIRA, Franklin. Francis Schaeffer: “levando cativo todo o pensamento”. Disponível em: <https://www.labri.org.br/francis-schaffer> Acesso em 26 ago. 2019). Tal entendimento é refletido nas obras de Francis Schaeffer, uma delas aqui bastante citada, A morte da razão, de 1986, e ainda, O Deus que intervém (2009).


Crítica possível ao pensamento de Schaeffer

No prefácio ao seu livro A morte da razão (1986), Francis Schaeffer afirma que para comunicarmos eficazmente a mensagem cristã será necessário entender as formas de pensamento da nossa geração. Em suas próprias palavras, “[...] diferirão elas ligeiramente de lugar para lugar, e em maior grau de nação para nação. Contudo, características há de uma época tal em que vivemos que são as mesmas onde quer que nos achemos” (SCHAEFFER, 1986, p. 05).

Conquanto Schaeffer tenha deixado para a Igreja uma contribuição ímpar no sentido de nos levar ao reconhecimento da necessidade de entender como pensa o homem contemporâneo, ou, como pensa a nossa geração, sua visão muito uniformizada da realidade humana nos parece muitíssimo equivocada, mesmo que ele estivesse escrevendo para a Modernidade, mas reconhecendo que se tratava de uma era em mudança (ainda que ele tenha produzido seu pensamento às portas da Pós-Modernidade e já sentindo seus impactos. Existe discussão sobre quando inicia a Pós-Modernidade. A expressão “Pós-Modernidade” foi usada para referir-se a uma época pela primeira vez no início do século 20, na década de 1930. A reflexão em torno do que vem a ser a Pós-Modernidade, permanece com várias propostas, ausência de unanimidade e com abundância de utilização da expressão "Pós-modernidade").

Parece ficar implícito na afirmação de Schaeffer, quanto à questão dessa univocidade que ele menciona, que a sua leitura acabou não considerando o fato de que o Oriente, que vivenciava uma realidade estruturalmente diferente do Ocidente, representava em seu tempo um outro panorama histórico, religioso e cultural que contradiria o seu pressuposto básico. Ocidente e Oriente constituem duas realidades sociais, religiosas, culturais, antropológicas, étnicas e historicamente diferentes e até divergentes. Não se trata, pois, de formas de pensamento que, como ele afirmou, diferiam “ligeiramente” de lugar para lugar. Esse parece ser um reflexo do típico “egocentrismo étnico” norte-americano com sua tendência de olhar o mundo pelas lentes estadunidenses, que idealiza como realidade perfeita aquela que se parece com a realidade americana. De cá, no Brasil, sigo sem interesse no sonho americano...

É claro que Francis Schaeffer foi um homem de grande abertura cultural, tendo ele mesmo dialogado com pessoas de culturas diversas. Mas estaria ele isento ou “imune” às tendências que cercaram sua própria época? Fica evidente que ele procura voltar na História para entender o homem de seu tempo (ele próprio afirma isto no prefácio de A morte da razão), mas ao mesmo tempo parece seguir uma determinada tendência. 

Caberia sua análise num contexto como o Oriental com milênios de tradições e História? O filósofo francês Paul Ricoeur “insurge-se” contra o assim chamado “esquema cristão”, esse “[...] esquema cronológico universal da “história da salvação” que tende a “abolir as peripécias, perigos, fracassos, rupturas e horrores da história em sua procura de uma visão de conjunto tranquilizadora fornecida pelo esquema providencial dessa grandiosa narração” [...] Uma das tarefas  da Teologia narrativa é libertar a rede multiforme dos textos bíblicos dessa concepção unívoca da história da salvação” (RICOEUR, Paul. A Hermenêutica Bíblica. Trad.: Paulo Meneses. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 38). 

Não seria uma forma equivocada ou mesmo reducionista demais aplicar a leitura de Schaeffer sobre o homem moderno quando se pensa no Oriente com sua enorme e colossal História? Curiosamente, ele parte de Tomás de Aquino (1225-1274), um teólogo católico italiano cuja genialidade conquanto seja inquestionável, naturalmente está escrevendo a partir de um ethos específico e de uma tradição religiosa específica. Essas são questões que precisam ser seriamente levantadas. Inevitavelmente, toda análise, por mais abrangente que seja, nunca será totalmente precisa ao considerar – ainda que indiretamente – culturas alheias com as quais não houve convivência. E tal “percurso” muitas vezes tende a dar lugar a reducionismos, imprecisões (às vezes grosseiras), preconceitos, etnocentrismo e uma compreensão indevida do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que é supracultural, atemporal e aplicável a qualquer povo e lugar no mundo.

Outro ponto importante do pensamento de Schaeffer que merece especial atenção é o que defende que grandes problemas da humanidade, como o aborto, eutanásia, desagregação da família, dentre outros, são resultados da mudança de cosmovisão no mundo ocidental. Ele afirma isto já no início do sermão intitulado Manifesto cristão e também em sua obra A morte da razão (1986). 

Precisamos perguntar, contudo, se de fato, em algum momento da história, o mundo ocidental assumiu uma visão ou uma cosmovisão que fosse exclusivamente “formatada” nos moldes judaico-cristãos. Schaeffer fala em suas obras da “fé bíblica histórica”, e se esforça para indicar, por meio de pontos referenciais na arte e em outras áreas de produção humana, os momentos em que esse paradigma teria começado a dar sinais dessa mudança. Para Schaeffer, essa falta de unidade (Schaeffer entendia que esses eventos por ele mencionados [aborto, eutanásia, etc.] devem ser vistos como resultados de um mesmo problema, como que fazendo parte de uma unidade, e não como eventos isolados que nada tem que ver entre si) e a entrada da cosmovisão humanista é que são os fatores responsáveis pela degradação em que o mundo se encontraria.

Cremos, contudo, que uma breve “caminhada” pela história da América Latina (para não falar do mundo ocidental de modo mais abrangente) já seria suficiente para percebermos que o mundo ocidental nunca teve uma cosmovisão cristã puramente judaico-cristã. Se olharmos para a história do trabalho de catequização cristã propagada por padres católicos em solo tupiniquim, em grande medida o que foi feito não foi um trabalho de evangelização, mas de “cristianização”, e em diversos momentos da história, essa cristianização foi imposta sobre povos indígenas e mais adiante sobre sociedades inteiras, mesmo depois da expulsão dos jesuítas do país, no século 18, e das profundas modificações educacionais que ocorreram logo em seguida (Cf. o artigo: COSTA, João Paulo Peixoto. Os usos da fé: índios, catolicismo e política indigenista no Ceará no século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul. 2011). Mais uma vez, salta à vista aquela forte impressão de que Schaeffer, em certa medida, não pôde evitar construir uma abordagem teológica com traços de “etnocentrismo cristão”, que olha para a realidade mundial a partir de um ethos particular interpretando essa realidade maior a partir desse olhar menor, “desrespeitando” as diferentes realidades, circunstâncias e tradições culturais e religiosas. Ou, como diríamos de forma bem humorada, "olhando o mundo pela fresta da fechadura".

O que poderia ser proposta como solução a esse possível problema no pensamento schaefferiano? Nossa proposta aqui é que o Evangelho deve ser apresentado de modo simples e objetivo, entendendo que ele é supracultural, está acima das culturas humanas, mas não no sentido de que as diferentes culturas devam ser simplesmente ignoradas ou desprezadas. É claro que ao mesmo tempo, a Igreja precisa “ouvir” Schaeffer no que ele diz a respeito da necessidade de sermos capazes de comunicar o evangelho ao homem moderno (em nosso caso, pós-moderno) de modo realmente eficaz, mas estando também atentos no sentido de não descaracterizar o evangelho às custas de uma contextualização. Cremos que este é um esforço que requer diálogo com as diferentes culturas, entendendo suas especificidades, sem, contudo, reduzi-las a um suposto problema comum que, muito provavelmente, essas diferentes culturas nem reconheceriam.

Fica evidente que Schaeffer, a despeito do seu brilhantismo e grande contribuição que trouxe ao pensamento cristão, colocando-se inclusive, como um dos maiores influenciadores nesse sentido, elaborou uma categoria e buscou de algum modo aplica-la à leitura da realidade do mundo, de antes e de seu tempo. Isso fica muito evidente, por exemplo, em suas palavras a seguir: “O que a Reforma nos diz, pois, é que Deus falou nas Escrituras tanto acerca do “andar de cima” como do “andar de baixo” (SCHAEFFER, 1986, p. 22). Mas, certamente esta – e qualquer outra categoria contemporânea, teológica ou filosófica – passaram longe da cabeça dos autores bíblicos. Basta uma leitura bíblica com o auxílio da Teologia Bíblica para perceber isto. 

Obviamente, este “erro” não é exclusividade de Schaeffer. Nossas Teologias Sistemáticas são recorrentes nesse tipo de erro, o que não podemos negar, inclusive. Não por acaso, ao longo das últimas décadas levantaram-se vozes reivindicando uma Teologia autóctone, que respeite as especificidades locais e dialogue com a realidade a que se destinam. A esta altura, precisamos voltar a um conceito fundamental nesta crítica: Conquanto reconheçamos a Bíblia como Palavra inspirada de Deus, e que ela seja um livro de verdades absolutas para a humanidade independentemente de época, lugar e cultura, a nossa compreensão dela é limitada e precisa ser revista, melhorada e ampliada, por vezes. Portanto, ao criticar o pensamento schaefferiano em um ponto em particular não necessariamente estamos criticando a validade e atualidade da Palavra de Deus.


Referências


CARVALHO, Guilherme de. Francis Schaeffer para o século 21. Disponível em: <https://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/02/08/francis-schaeffer-para-o-seculo-21/#more-161> Acesso em 26 ago. 2019.

COSTA, João Paulo Peixoto. Os usos da fé: índios, catolicismo e política indigenista no Ceará no século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul. 2011.

FERREIRA, Franklin. Francis Schaeffer: “levando cativo todo o pensamento”. Disponível em: <https://www.labri.org.br/francis-schaffer> Acesso em 26 ago. 2019.

GONZÁLEZ, Justo L. Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé. Trad.: Reginaldo Gomes de Araújo. São Paulo: Hagnos, 2008.

PEREIRA JR., Isaías Lobão. A teologia de Rudolf Bultmann. Disponível em: <www.monergismo.com/textos/teologia/teologia_rudolf.ht> Acesso em 11 set. 2018.

SCHAEFFER, Francis A. A morte da razão. 4ª ed. São Paulo: Editora Fiel da Missão Evangélica Literária, 1986.

SCHAEFFER, Francis. O Deus que intervém. Trad.: Gabrielle Greggersen. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

SCHAEFFER, Francis A. O manifesto cristão. [vídeo]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=108&v=2oG1VQ1HyvM> Acesso em 13 set. 2019.

RICOEUR, Paul. A Hermenêutica Bíblica. Trad.: Paulo Meneses. São Paulo: Edições Loyola, 2006.


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