quinta-feira, 4 de junho de 2020

Cultos precários




Já se passaram muitos anos, mas ainda sinto muitas saudades da "igrejinha"... Profundamente melancólico, insistentemente saudosista e inelutavelmente reflexivo, não consigo deixar de me comover com algumas lembranças preciosas. Essas lembranças são minhas, é verdade, mas os valores que elas evocam são comuns a muitos de nós, especialmente para aqueles que conheceram uma forma de Pentecostalismo puro, simples, sincero e marcante.

E acredite: essas lembranças não me impedem de prosseguir adiante, e não me impedem justamente porque evocam esses valores preciosos que me conduzem em minha peregrinação. Devo afirmar, portanto, que essa minha insistência em volver minha mente a essas lembranças, vez ou outra, não sinaliza para uma possível recusa de minha parte no sentido de seguir em frente.

Esse meu apego a essas lembranças de um passado remoto também não evidenciam um homem que tenha sido infeliz nos anos que se seguiram. Longe disto! Vivi e continuo vivendo uma boa vida, graças a Deus. Mas, de algum modo, preciso voltar a essas lembranças.

Para falar francamente, considero essas lembranças como bens preciosos, daqueles que devemos guardar por toda a nossa existência. Trata-se de um importante passado que serve de referência para o futuro. Neste texto, evoco um passado que tem que ver com o culto cristão. É mais uma de minhas reflexões, que aqui compartilho com você, trazendo à tona algumas dessas lembranças curiosas e alguns desses valores evocados por essas preciosas memórias afetivas...

Ainda me lembro daqueles cultos precários, sempre com um número reduzido de pessoas, o pandeiro como o instrumento oficial (até havia uma guitarra, mas ninguém mais sabia tocar) e o olhar das pessoas que passavam na rua e nos viam ali, cantando e pregando.

Ainda me lembro dos ensaios da “mocidade" (a mocidade era composta por meu irmão, eu e outros dois ou três jovens apenas); me lembro do momento em que cantávamos aquele louvor "Coração valente", da Banda Voz da Verdade. E acredite: eu fazia a voz principal...

Ainda me lembro de nós, da "igrejinha", pelas ruas do bairro, entregando folhetos e outras vezes fazendo visitas. E havia aqueles dias em que ficávamos todos felizes porque alguém diferente estava frequentando o culto naquela dada noite. E se houvesse uma conversão, então, aí é que a felicidade era completa... inenarrável, eu diria! E houve vários casos. Algumas dessas pessoas, inclusive, sei que permanecem na fé e são boas cristãs até hoje.

E o que dizer daqueles cultos precários que não prometiam nada, que seguiam frios até certa altura, mas, de repente... o Espírito Santo nos surpreendia, nos fazendo lembrar o amado texto de Atos 2.2: “E de repente...”. Absolutamente inesperadas, mas profundamente desejadas, essas manifestações do Espírito de Deus entre nós deixaram marcas profundas, até hoje. 

Ainda me lembro da minha mãe quando se levantava com uma palavra profética que tocava nossas almas. A reverência com que nos colocávamos naqueles momentos era digna da chegada de uma eminente Autoridade e ainda me lembro que alguns choravam e de que muitas vezes nós voltávamos para casa radiantes, afinal, o Rei do Universo havia falado conosco naquela noite...

Oh! Ainda me lembro daqueles cultos precários, mesmo tantos anos depois. 

Quero dar aqui alguns detalhes sobre as pessoas que faziam aqueles cultos precários acontecer. Vou descrevê-las brevemente e você logo perceberá que elas não tinham nada de especial: tratavam-se basicamente de um portuário analfabeto, que por vezes vinha para o culto imediatamente após chegar de um dia de trabalho pesado, ainda com a roupa do serviço, empurrando uma velha bicicleta; uma dona de casa muito dinâmica e versátil, de temperamento forte, alfabetizada, que se expressava bem, mas sem muita instrução e era ela a líder espiritual desses cultos precários; havia também um jovem negro, filho adotivo, que trabalhava para ganhar uma merreca, mas poucas vezes na vida conheci um crente tão dedicado como ele; havia ainda um adolescente sem muitas perspectivas sociais, filho adotivo também, que sofrera alguns traumas na infância por causa dos horríveis maus tratos que recebera da mãe biológica e que só viria a frequentar uma faculdade anos mais tarde, mas que mesmo assim adorava ler, escrever em cadernos e numa máquina de datilografar (os mais "experientes" entenderão) e que sonhava “alto”: ter uma estante cheia de livros (esse era eu). Havia também um casal e uma mãe solteira que frequentavam regularmente aqueles cultos, também pessoas simples, sem maiores e melhores condições. Enfim, era uma comunidade de fé invisível socialmente, mas feliz...

Mas, o que havia de especial naqueles cultos precários e em nós, pessoas tão simples, que mesmo hoje, décadas depois, ainda me lembro deles com saudosismo? O que havia de especial nesses cultos? 

Eu respondo e aqui faço emergir, dessas preciosas lembranças, os valores que nos faziam ser tão felizes naqueles cultos precários. É que naquele tempo éramos movidos por uma preocupação primária, precípua e elementar: ser bons crentes e amarmos uns aos outros. “Sede unidos”, dizia minha mãe naquelas palavras proféticas que ela proferia algumas vezes.

Naquele tempo, não tínhamos carro, internet, recursos e contato com pessoas influentes. Faltava tudo e um pouco mais. Inseridos numa região de periferia, convivíamos com certo nível de violência, dificuldade de acesso a serviços básicos, mas curiosamente, vivíamos absolutamente felizes. Este texto não pretende inferir que pobreza é sinônimo de felicidade. Ricos e pessoas que vivem em condições melhores do que nós, também são felizes. Mas é curioso que nós, não tendo nada, tínhamos tudo; sendo pobres, éramos ricos; cultuando num cubículo, nos elevávamos para acima da simplicidade do lugar, pelo êxtase na adoração.

Aqueles cultos precários eram motivo de imensa alegria, de encontros e reencontros com Deus, de motivação para seguir em frente e se colocavam para nós como momentos repetidos de construção de relações duradouras. Acredite: aqueles cultos precários eram ansiosamente aguardados por nós. E como eles nos faziam felizes...

Daquele tempo, trago comigo essas lembranças de uma vivência pentecostal marcada pelo amor a Deus, pela prática de uma fé simples mas profunda, do exercício de cultos desprovidos de ornamentos, mas marcados pela presença de Deus. Na condição de leigos, fomos alcançados pela sabedoria da Palavra, Palavra que líamos com amor e procurávamos introduzir em nossas vidas.

Concluindo, digo que não posso idealizar aquele tempo e aqueles cultos precários. Tínhamos problemas, é claro, e vários! Mas viver o que vivi, com aquelas pessoas simples, me permitiu conhecer o evangelho de modo puro e simples. Me permitiu experienciar a vida cristã desprovida de interesses mesquinhos e egoístas, já que o que nos motivava era o amor a Cristo. Havia uma crença viva, uma fé pulsante. Do contrário, nada daquilo faria sentido. 

As práticas da vida cristã, como o ato de pregar, de visitar pessoas, de colaborar financeiramente mesmo tendo tão pouco, o deslocar-se de casa de três a quatro vezes por semana para realizar os cultos precários, dentre outras ações, não fariam sentido algum se não houvesse uma motivação espiritualmente maior, que nos fazia seguir adiante. As intenções eram puras. Havia sinceridade. Posso dizer que vivi, naqueles cultos precários, o estado da arte do que é ser igreja e do que é cultuar...

Hoje, infelizmente, culto confunde-se com espetáculo e exibição humana; dízimos e ofertas são encarados como moeda de troca com o divino e não como mordomia cristã; o púlpito e a tribuna cristã tornaram-se espaços para autopromoção humana e não mais para a exposição exaustiva do evangelho. 

Desse modo, já não vejo mais tantos cultos precários acontecendo por aí. Os cultos, hoje, não têm nada de precário. Há muita parafernália, dinheiro envolvido, profissionalismo e formalidades em excesso nesses cultos de hoje... Mas confesso que isso tudo me é muito estranho. E desconfio que Aquele que disse que onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome que Ele estaria entre eles, também não é muito afeito a esses cultos, já que Ele sempre amou a sinceridade e a simplicidade. Bem, Ele nasceu numa manjedoura, sendo Eterno se fez mortal e morreu numa cruz; sendo Santo, acolheu pecadores, prostitutas, publicanos e crianças, todas essas pessoas marginalizadas pela sociedade judaica. Desconfio que Ele de fato prefere os cultos precários, até porque nesses cultos, fica evidente a dependência humana de Deus. Não há espaço para ostentações. E a julgar pelos cultos precários que frequentei durante tantos anos, desconfio até que Ele nem mais esteja participando dos cultos de hoje em dia...

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