PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
DOUTORADO EM TEOLOGIA
COMUNICAÇÃO ACADÊMICA
Comunicação proferida presencialmente, em aula, na disciplina de Temas Especiais de Teologia e História da Igreja, ministrada pelo Prof. Dr. Luís Corrêa Lima, em 11 de maio de 2023, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio).
AS NARRATIVAS HISTÓRICAS EM LUCAS-ATOS COMPREENDIDAS COMO
PORTADORAS DE INTENCIONALIDADE TEOLÓGICA
A Hermenêutica Pentecostal,
entendida como um modo próprio dos pentecostais de lerem e compreenderem as
Escrituras, ancora-se em pressuposto muito importante, que consiste em
compreender que narrativas “históricas” do Novo Testamento, sobretudo as
narrativas contidas na obra dupla de Lucas-Atos, são portadoras de
intencionalidade teológica. Esta comunicação busca explicitar essa
característica da Hermenêutica e da experiência pentecostal, entendendo-se que
é possível encontrar aportes para ela, inclusive na própria ciência História,
na qual se reconhece que o registro histórico carrega consigo uma
epistemologia, como também reflete o olhar do historiador. Não por acaso, se
pode falar de filosofia da História.
O esforço de teólogos pentecostais
no sentido de indicar as narrativas históricas como fontes possíveis para a sua
Teologia e para servir como um fundamento para a Hermenêutica Pentecostal, não
constitui um esforço novo, ou inédito, por mais que possa suscitar discussões.
É que a história tem sido vista, já há vários séculos, como uma das fontes da
Teologia. O que os pentecostais fazem é entender e reafirmar que as narrativas
da obra dupla Lucas-Atos servem assim como fonte para alimentar a sua Teologia
e que elas sinalizam para a continuidade, na vida da Igreja, das experiências
registradas nesses livros.
A história é “lugar teológico”, e
uma fonte legítima para a reflexão teológica. E fazer Teologia sem levar em
conta o momento histórico e a própria História é arriscar a Teologia à
irrelevância. A Teologia deve “pisar o chão da vida”, ainda que se volte para o
alto. É válido lembrar que narrativas históricas da Bíblia e, mais em
particular, a obra de Lucas no Evangelho e em Atos, pode, com justiça, ser
entendida como uma “teologia histórica”. O que tem sido proposto por teólogos
pentecostais no que se refere a existirem teologias subjacentes em narrativas
históricas não é, em si mesmo, um esforço inédito.
O teólogo pentecostal Roger
Stronstad (2020) discorre sobre os indícios possíveis que estão presentes na
obra dupla de Lucas-Atos que sinalizam para esse caráter “histórico” desses
dois livros neotestamentários. Stronstad insiste na necessidade de se considerar
Lucas e Atos como uma obra conjunta, indicando que isso é importante para
reconhecer a unidade de gênero literário, e a unidade e a continuidade dos
temas históricos e teológicos dos dois livros.
Aqui, vale destacar um cuidado muito
importante que se deve tomar ao considerar as narrativas históricas da Bíblia,
cuidado que foi apontado pelo biblista Johan Konings (2014), no sentido de
compreender que o “histórico”, na Bíblia, refere-se sim ao real, mas isso não
significa que o relato esteja posto em termos da crítica histórica
contemporânea. Konings lembra que, na Bíblia, por vezes, o histórico é
absorvido no narrativo, destacando-se assim o significado, e não a exatidão
científica no relato.
Esse cuidado é, de fato, muito
importante, para que se evite incorrer no erro de atribuir a passagens das
Escrituras sentidos que elas, de fato, não possuem. Em meu livro Hermenêutica bíblica (2ª ed., 2022),
reflito sobre o que tenho chamado de “anacronismo hermenêutico”, que consiste
em “introjetar” no texto bíblico um sentido construído a partir do ethos do leitor contemporâneo e
interpretar passagens das Escrituras à luz das categorias atuais. Opto pela
expressão “anacronismo hermenêutico” ao invés do termo eisegese, tendo em vista que na eisegese
o leitor já se aproxima do texto bíblico dispondo de uma compreensão prévia
sobre ele. No anacronismo hermenêutico, essa compreensão pode vir a ser
construída pelo leitor na medida em que avança na leitura do texto bíblico, mas
sempre apoiando-se em categorias contemporâneas a ele e sem levar em conta o
que as palavras e eventos descritos pela Bíblia significam em seu ambiente
vivencial original.
Ao discorrer sobre anacronismo
hermenêutico, tenho consciência, é claro, de que o leitor ressignifica os
textos em seu encontro com ele e, inevitavelmente, o sentido original,
pretendido pelo autor, “se perde” ao sair das mãos do autor. Um exemplo disso é
a leitura popular da Bíblia. Mas isso não necessariamente constitui uma
exigência a que sejam ignorados os contextos bíblicos e a busca pelo sitz im leben do texto bíblico. Me situo
entre aquela exegese mais tradicional, que defende a recuperação do sentido
pretendido pelo autor, e as contribuições de filósofos como Paul Ricoeur, que
enfatizam o papel do leitor no processo de interpretação. Assim, entendo ser
possível uma aproximação ao sentido
pretendido pelo autor, mas sem
deixar de reconhecer que o leitor
ressignifica o texto.
Dito isso, fica o cuidado no sentido
de guardar-se, portanto, do anacronismo hermenêutico, enquanto se busca
resgatar qual a intenção teológica que subjaz a um texto bíblico. Mesmo que não
se admita a possibilidade de um resgate inquestionável (pleno) dessa
intencionalidade teológica no autor (hagiógrafo sagrado), admite-se a
possibilidade de uma aproximação legítima e verificável, sobretudo pelo
trabalho exegético que vai seguindo as evidências disponíveis no texto.
A reflexão em torno da
intencionalidade teológica contida na obra dupla de Lucas-Atos é importante
para a reflexão em torno da Teologia e da própria história da Igreja, uma vez
que permite identificar (ou mesmo
resgatar) bases teológicas fundantes do pensamento e da práxis eclesial
contidas nesses dois livros, e ponderar sobre elas. Para os pentecostais,
em particular, esse esforço, sem dúvida, é fundamental, pois eles encontram, de
modo mais especial em Lucas-Atos, fundamento para a sua fé, para a sua Teologia
e para a sua própria experiência espiritual. Seria bem mais difícil articular
uma Teologia pentecostal propriamente dita se não existissem esses dois livros,
Lucas e Atos.
Reconhecendo isto, os pentecostais
veem nessa obra dupla uma Teologia subjacente que pressupõe a repetição das
experiências registradas em Atos na vida da Igreja cristã ao longo de sua
história. Mesmo se forem considerados apenas os leitores imediatos de Lucas,
isso se aplica. Essa comunidade ledora estaria sendo instruída quanto à
continuidade das experiências em Atos.
O derramar do Espírito é também para
essa comunidade ledora. Esse derramamento não era apenas para os cristãos
presentes no Dia de Pentecostes. E os pentecostais irão entender que as
histórias de Atos dos Apóstolos são também as suas histórias. Noutras palavras,
a hermenêutica pentecostal é pautada pela apropriação experiencial de
determinados relatos neotestamentários. Ela entende que a Igreja não apenas
pode desfrutar das bênçãos registradas nesse livro, Atos dos Apóstolos, como
ela é convidada a desejar e a buscar essas bênçãos espirituais.
Para Robert P. Menzies, teólogo e
missionário pentecostal, de fato a hermenêutica da maioria dos crentes
pentecostais não é complexa e não se ocupa de questões relativas à
confiabilidade histórica. Ela não se ocupa excessivamente no estudo de sistemas
teológicos. Sua hermenêutica é típica e direta, nas palavras de Menzies. As histórias
contidas no livro de Atos são entendidas como sendo suas histórias também. Elas
servem de modelo para alimentar sua fé e moldar a sua própria vida e
experiência religiosa. Menzies lembra ainda que essa hermenêutica não está,
necessariamente, indiferente à necessidade de uma leitura bíblica que seja
feita com discernimento. Há aspectos das narrativas bíblicas que devem ser
analisados com cuidado e cautela.
Essa compreensão permite diversos
desdobramentos reflexivos, inclusive sobre aspectos eclesiológicos do
Pentecostalismo e sobre a sua contribuição ao Cristianismo. Joseph Ratzinger
(2015), comentando sobre a preocupação da Igreja Católica no sentido de que sua
reflexão teológica esteja conectada à realidade histórica, afirma que era
necessário voltar-se para os pobres e excluídos. Mas é interessante pensar que
determinados movimentos religiosos, como o Pentecostalismo, surgiram e operaram
justamente em contextos sociais marginalizados, acolhendo, ao seu próprio modo,
pessoas e famílias excluídas. Mostraram-se, na prática, como movimentos que
respondiam com certa efetividade a determinadas realidades sociais difíceis,
colocando-se ao lado de gente esquecida pelo Estado e por uma grande parcela da
sociedade.
Naturalmente, esse fato não pode
servir de pressuposto para invalidar a reflexão em torno da necessidade de uma
Teologia cristã que olha para o pobre e para o excluído, como é o caso da
Teologia da Libertação. Mas também é válido considerar que o Pentecostalismo,
na prática, ofereceu a sua contribuição, de modo marcante, a despeito dos
desafios com os quais convive atualmente. Mesmo sem dispor, inicialmente, de
uma Teologia mais robusta, sobretudo em termos acadêmicos, ele foi e tem sido
um movimento notadamente prático em sua eclesiologia e missão. E isso gera
impactos eclesiais e sociais.
A faxineira que é invisível à
sociedade, que passa despercebida em seu ambiente de trabalho, cotidianamente,
na sua comunidade de fé pentecostal assume lugar de preponderância. Lá ela é
muito mais que uma “faxineira invisível”: ela é a líder do círculo de oração,
ela é conselheira e mentora espiritual de outras mulheres. Sua voz não apenas é
ouvida, é também solicitada. O trabalhador braçal, analfabeto, sem uma
colocação social de maior destaque, assume, na sua comunidade de fé, a posição
de alguém importante, relevante para os seus “irmãos”. Ele é o diácono, o
presbítero, o evangelista, por vezes o pastor da comunidade de fé. Ele é útil,
ele é respeitado como obreiro, como líder espiritual de um “rebanho”. Ali ele é
dignificado, e sua existência ganha profundo significado e utilidade.
Aceite ou não a academia, aceitem ou não os detratores do Pentecostalismo, esses são caminhos de dignidade e de dignificação do ser humano num determinado círculo social e religioso. E esse processo de dignificação humana, verificada em muitas comunidades de fé pentecostais, é o reflexo de pessoas que se unem e se ajudam em torno de uma fé comum, a fé pentecostal. Em grande parte do Pentecostalismo brasileiro, são pessoas com poucos recursos que, ligadas por uma mesma fé e por uma mesma experiência - a pentecostal - caminham juntas na vida e se auxiliam, inclusive, em demandas sociais e vicissitudes nas quais o Estado não se faz presente e das quais uma parcela significativa da população e da academia não toma parte existencial.
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