quarta-feira, 21 de junho de 2023

AS NARRATIVAS HISTÓRICAS EM LUCAS-ATOS COMPREENDIDAS COMO PORTADORAS DE INTENCIONALIDADE TEOLÓGICA ✒️

 


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

DOUTORADO EM TEOLOGIA

 

Roney Cozzer

 

COMUNICAÇÃO ACADÊMICA

Comunicação proferida presencialmente, em aula, na disciplina de Temas Especiais de Teologia e História da Igreja, ministrada pelo Prof. Dr. Luís Corrêa Lima, em 11 de maio de 2023, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio).

 

AS NARRATIVAS HISTÓRICAS EM LUCAS-ATOS COMPREENDIDAS COMO PORTADORAS DE INTENCIONALIDADE TEOLÓGICA

 

A Hermenêutica Pentecostal, entendida como um modo próprio dos pentecostais de lerem e compreenderem as Escrituras, ancora-se em pressuposto muito importante, que consiste em compreender que narrativas “históricas” do Novo Testamento, sobretudo as narrativas contidas na obra dupla de Lucas-Atos, são portadoras de intencionalidade teológica. Esta comunicação busca explicitar essa característica da Hermenêutica e da experiência pentecostal, entendendo-se que é possível encontrar aportes para ela, inclusive na própria ciência História, na qual se reconhece que o registro histórico carrega consigo uma epistemologia, como também reflete o olhar do historiador. Não por acaso, se pode falar de filosofia da História.

O esforço de teólogos pentecostais no sentido de indicar as narrativas históricas como fontes possíveis para a sua Teologia e para servir como um fundamento para a Hermenêutica Pentecostal, não constitui um esforço novo, ou inédito, por mais que possa suscitar discussões. É que a história tem sido vista, já há vários séculos, como uma das fontes da Teologia. O que os pentecostais fazem é entender e reafirmar que as narrativas da obra dupla Lucas-Atos servem assim como fonte para alimentar a sua Teologia e que elas sinalizam para a continuidade, na vida da Igreja, das experiências registradas nesses livros.

A história é “lugar teológico”, e uma fonte legítima para a reflexão teológica. E fazer Teologia sem levar em conta o momento histórico e a própria História é arriscar a Teologia à irrelevância. A Teologia deve “pisar o chão da vida”, ainda que se volte para o alto. É válido lembrar que narrativas históricas da Bíblia e, mais em particular, a obra de Lucas no Evangelho e em Atos, pode, com justiça, ser entendida como uma “teologia histórica”. O que tem sido proposto por teólogos pentecostais no que se refere a existirem teologias subjacentes em narrativas históricas não é, em si mesmo, um esforço inédito.

O teólogo pentecostal Roger Stronstad (2020) discorre sobre os indícios possíveis que estão presentes na obra dupla de Lucas-Atos que sinalizam para esse caráter “histórico” desses dois livros neotestamentários. Stronstad insiste na necessidade de se considerar Lucas e Atos como uma obra conjunta, indicando que isso é importante para reconhecer a unidade de gênero literário, e a unidade e a continuidade dos temas históricos e teológicos dos dois livros.

Aqui, vale destacar um cuidado muito importante que se deve tomar ao considerar as narrativas históricas da Bíblia, cuidado que foi apontado pelo biblista Johan Konings (2014), no sentido de compreender que o “histórico”, na Bíblia, refere-se sim ao real, mas isso não significa que o relato esteja posto em termos da crítica histórica contemporânea. Konings lembra que, na Bíblia, por vezes, o histórico é absorvido no narrativo, destacando-se assim o significado, e não a exatidão científica no relato.

Esse cuidado é, de fato, muito importante, para que se evite incorrer no erro de atribuir a passagens das Escrituras sentidos que elas, de fato, não possuem. Em meu livro Hermenêutica bíblica (2ª ed., 2022), reflito sobre o que tenho chamado de “anacronismo hermenêutico”, que consiste em “introjetar” no texto bíblico um sentido construído a partir do ethos do leitor contemporâneo e interpretar passagens das Escrituras à luz das categorias atuais. Opto pela expressão “anacronismo hermenêutico” ao invés do termo eisegese, tendo em vista que na eisegese o leitor já se aproxima do texto bíblico dispondo de uma compreensão prévia sobre ele. No anacronismo hermenêutico, essa compreensão pode vir a ser construída pelo leitor na medida em que avança na leitura do texto bíblico, mas sempre apoiando-se em categorias contemporâneas a ele e sem levar em conta o que as palavras e eventos descritos pela Bíblia significam em seu ambiente vivencial original.

Ao discorrer sobre anacronismo hermenêutico, tenho consciência, é claro, de que o leitor ressignifica os textos em seu encontro com ele e, inevitavelmente, o sentido original, pretendido pelo autor, “se perde” ao sair das mãos do autor. Um exemplo disso é a leitura popular da Bíblia. Mas isso não necessariamente constitui uma exigência a que sejam ignorados os contextos bíblicos e a busca pelo sitz im leben do texto bíblico. Me situo entre aquela exegese mais tradicional, que defende a recuperação do sentido pretendido pelo autor, e as contribuições de filósofos como Paul Ricoeur, que enfatizam o papel do leitor no processo de interpretação. Assim, entendo ser possível uma aproximação ao sentido pretendido pelo autor, mas sem deixar de reconhecer que o leitor ressignifica o texto.

Dito isso, fica o cuidado no sentido de guardar-se, portanto, do anacronismo hermenêutico, enquanto se busca resgatar qual a intenção teológica que subjaz a um texto bíblico. Mesmo que não se admita a possibilidade de um resgate inquestionável (pleno) dessa intencionalidade teológica no autor (hagiógrafo sagrado), admite-se a possibilidade de uma aproximação legítima e verificável, sobretudo pelo trabalho exegético que vai seguindo as evidências disponíveis no texto.

A reflexão em torno da intencionalidade teológica contida na obra dupla de Lucas-Atos é importante para a reflexão em torno da Teologia e da própria história da Igreja, uma vez que permite identificar (ou mesmo resgatar) bases teológicas fundantes do pensamento e da práxis eclesial contidas nesses dois livros, e ponderar sobre elas. Para os pentecostais, em particular, esse esforço, sem dúvida, é fundamental, pois eles encontram, de modo mais especial em Lucas-Atos, fundamento para a sua fé, para a sua Teologia e para a sua própria experiência espiritual. Seria bem mais difícil articular uma Teologia pentecostal propriamente dita se não existissem esses dois livros, Lucas e Atos.

Reconhecendo isto, os pentecostais veem nessa obra dupla uma Teologia subjacente que pressupõe a repetição das experiências registradas em Atos na vida da Igreja cristã ao longo de sua história. Mesmo se forem considerados apenas os leitores imediatos de Lucas, isso se aplica. Essa comunidade ledora estaria sendo instruída quanto à continuidade das experiências em Atos.

O derramar do Espírito é também para essa comunidade ledora. Esse derramamento não era apenas para os cristãos presentes no Dia de Pentecostes. E os pentecostais irão entender que as histórias de Atos dos Apóstolos são também as suas histórias. Noutras palavras, a hermenêutica pentecostal é pautada pela apropriação experiencial de determinados relatos neotestamentários. Ela entende que a Igreja não apenas pode desfrutar das bênçãos registradas nesse livro, Atos dos Apóstolos, como ela é convidada a desejar e a buscar essas bênçãos espirituais.

Para Robert P. Menzies, teólogo e missionário pentecostal, de fato a hermenêutica da maioria dos crentes pentecostais não é complexa e não se ocupa de questões relativas à confiabilidade histórica. Ela não se ocupa excessivamente no estudo de sistemas teológicos. Sua hermenêutica é típica e direta, nas palavras de Menzies. As histórias contidas no livro de Atos são entendidas como sendo suas histórias também. Elas servem de modelo para alimentar sua fé e moldar a sua própria vida e experiência religiosa. Menzies lembra ainda que essa hermenêutica não está, necessariamente, indiferente à necessidade de uma leitura bíblica que seja feita com discernimento. Há aspectos das narrativas bíblicas que devem ser analisados com cuidado e cautela.

Essa compreensão permite diversos desdobramentos reflexivos, inclusive sobre aspectos eclesiológicos do Pentecostalismo e sobre a sua contribuição ao Cristianismo. Joseph Ratzinger (2015), comentando sobre a preocupação da Igreja Católica no sentido de que sua reflexão teológica esteja conectada à realidade histórica, afirma que era necessário voltar-se para os pobres e excluídos. Mas é interessante pensar que determinados movimentos religiosos, como o Pentecostalismo, surgiram e operaram justamente em contextos sociais marginalizados, acolhendo, ao seu próprio modo, pessoas e famílias excluídas. Mostraram-se, na prática, como movimentos que respondiam com certa efetividade a determinadas realidades sociais difíceis, colocando-se ao lado de gente esquecida pelo Estado e por uma grande parcela da sociedade.

Naturalmente, esse fato não pode servir de pressuposto para invalidar a reflexão em torno da necessidade de uma Teologia cristã que olha para o pobre e para o excluído, como é o caso da Teologia da Libertação. Mas também é válido considerar que o Pentecostalismo, na prática, ofereceu a sua contribuição, de modo marcante, a despeito dos desafios com os quais convive atualmente. Mesmo sem dispor, inicialmente, de uma Teologia mais robusta, sobretudo em termos acadêmicos, ele foi e tem sido um movimento notadamente prático em sua eclesiologia e missão. E isso gera impactos eclesiais e sociais.

A faxineira que é invisível à sociedade, que passa despercebida em seu ambiente de trabalho, cotidianamente, na sua comunidade de fé pentecostal assume lugar de preponderância. Lá ela é muito mais que uma “faxineira invisível”: ela é a líder do círculo de oração, ela é conselheira e mentora espiritual de outras mulheres. Sua voz não apenas é ouvida, é também solicitada. O trabalhador braçal, analfabeto, sem uma colocação social de maior destaque, assume, na sua comunidade de fé, a posição de alguém importante, relevante para os seus “irmãos”. Ele é o diácono, o presbítero, o evangelista, por vezes o pastor da comunidade de fé. Ele é útil, ele é respeitado como obreiro, como líder espiritual de um “rebanho”. Ali ele é dignificado, e sua existência ganha profundo significado e utilidade.

Aceite ou não a academia, aceitem ou não os detratores do Pentecostalismo, esses são caminhos de dignidade e de dignificação do ser humano num determinado círculo social e religioso. E esse processo de dignificação humana, verificada em muitas comunidades de fé pentecostais, é o reflexo de pessoas que se unem e se ajudam em torno de uma fé comum, a fé pentecostal. Em grande parte do Pentecostalismo brasileiro, são pessoas com poucos recursos que, ligadas por uma mesma fé e por uma mesma experiência - a pentecostal - caminham juntas na vida e se auxiliam, inclusive, em demandas sociais e vicissitudes nas quais o Estado não se faz presente e das quais uma parcela significativa da população e da academia não toma parte existencial.


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