“Fiz um esforço incessante para não ridicularizar, não lamentar, não desprezar as ações humanas, mas compreendê-las” (Baruch de Espinosa).
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A clínica psicanalítica na atualidade leva em conta aspectos relevantes da sociedade que fazem parte do seu cotidiano, tais como o estresse do dia a dia nas grandes cidades, o impacto da mídia sobre o ser humano, a violência urbana, entre outros fatores importantes.[1] Na experiência de atendimento, no decorrer do tempo, o psicanalista vai tendo sua atenção atraída para os vários aspectos e variáveis que estão envolvidos nos transtornos que acometem seus atendidos, tais como síndrome do pânico, depressão, anorexia, etc., e essa observação o ajuda a compreender cada vez mais e melhor essas doenças e a entender o próprio paciente, com suas especificidades.
Em muitos casos, o "paciente" não relata os fatos que o envolvem de
maneira mais detalhada, com detalhes aprofundados, o que por si só já
indica uma resistência por parte do analisando, o que é uma dificuldade a ser
superada na clínica psicanalítica. Conceituar, com base teórica, os fenômenos
clínicos que envolvem o atendimento podem ajudar muito no tratamento, inclusive
na superação da resistência na clínica.
Sem dúvida que o tempo
presente, com sua cultura e suas características próprias, é um fator decisivo na própria atuação do psicanalista na clínica
e ele precisa considerá-lo. O próprio Sigmund Freud (1856-1939), "pai da Psicanálise", reconheceu ou demonstrou a
existência de um elo constitutivo entre cultura e inconsciente. Outros autores
também refletiram sobre o indivíduo, sobre a noção de "sujeito", como Jacques-Marie Émile Lacan[2] (1901-1981). E pensadores importantes como o sociólogo Zygmunt
Bauman (1925-2017) refletiram sobre a época atual. Bauman se refere ao nosso tempo em termos de "Modernidade líquida". Com isto, ele está aludindo às incertezas e às inconstâncias da Pós-modernidade.
B. B. Fuks pontua que para
Freud a cultura é “interioridade de uma situação individual – manifesta nos
impulsos que vêm desde dentro do sujeito – e a exterioridade de um código
universal, subjacente aos processos de subjetivação e aos outros regulamentos
das ações do sujeito com o outro”.[3] O tema "cultura" interessou a Freud e ele alude ao assunto em suas obras, como no Mal-estar na civilização (1930).
Outro ponto importante a
se considerar sobre a clínica psicanalítica é o fato de que a atuação do psicanalista
vem se tornando atualmente tão relevante na saúde pública quanto na clínica
privada, apesar das dificuldades decorrentes do fato da Psicanálise não ser
regulamentada pelo Estado. Rita Meurer Victor e Fernando Aguiar comentam o seguinte:
Até a década
de 1970, o campo de atuação da Psicologia era composto por duas dimensões
principais: a primeira, constituída pela clínica particular, era exercida de
forma autônoma; já a segunda, desenvolvida conforme o modelo de atenção
predominante da época, o de internação e medicação... compreendia as atividades
desempenhadas em hospitais e ambulatórios de saúde mental e subordinadas aos
paradigmas da psiquiatria.[4]
A insatisfação com a medicina praticada até aquele tempo foi um dos fatores que contribuiu para o surgimento e aplicação da Psicologia da Saúde, gerando a necessidade de reexame nos tratamentos praticados. É importante pontuar que a Psicanálise esteve vinculada à Psiquiatria no Brasil na primeira metade do século passado. A criação de instituições psicanalíticas no Brasil foi um dos fatores que contribuiu para a separação entre Psicanálise e Psiquiatria.
Freud, de certa, forma previu a
presença da Psicanálise no ambulatório em Linhas de Progresso na Terapia
Psicanalítica (1914/1974). Ele acreditava que a sociedade haveria de despertar
para a necessidade de oferecer escuta analítica a toda a população sem
seletividade. Ele mesmo cogitou a possibilidade de criar instituições que
atenderiam aos pacientes que não tinham condições de pagar pelo atendimento. Já
em 1920 surge o Instituto Psicanalítico de Berlim, fundado por Karl Abraham, Max Eitingon e Ernst Simmel, onde tratamentos terapêuticos foram oferecidos gratuitamente
e alguns pagos, mas de acordo com as possibilidades do paciente. O Instituto
Psicanalítico de Berlim serviu de modelo para muitas outras instituições
psicanalíticas.
Interessante também considerar em nosso texto a relação da clínica psicanalítica e a educação, uma relação possível da qual podem surgir contribuições variadas. Essa relação – Psicanálise e Educação – não é inédita; vem desde os primórdios da própria Psicanálise, com o seu fundador, Sigmund Freud:
Quando os
educadores se familiarizarem com as descobertas da psicanálise, será mais fácil
se reconciliarem com certas fases do desenvolvimento infantil e, entre outras
coisas, não correrão o risco de superestimar a importância dos impulsos
instintivos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem nas crianças. Pelo
contrário, vão se abster de qualquer tentativa de suprimir esses impulsos pela
força, quando aprenderem que esforços desse tipo com frequência produzem
resultados não menos indesejáveis que a alternativa, tão temida pelos
educadores, de dar livre trânsito às travessuras das crianças.[5]
Embora o próprio Freud não
tenha produzido extensamente artigos sobre Educação, demonstrou franco
interesse pelas conexões possíveis entre a Psicanálise e a Educação. Apesar da
resistência de alguns durante os anos, a Psicanálise e a Educação vem unindo
seus saberes, no sentido de conhecer melhor o funcionamento do ser humano.
Vários fatores são considerados nessa relação: a terapêutica na educação, o déficit de atenção nas crianças e
adolescentes, o prazer em aprender, a linguagem e suas nuances, o
desenvolvimento humano, dentre outros temas que podem receber contribuições teóricas da Psicanálise. Importante pontuar ainda que essa
relação possível entre Psicanálise e Educação proveu mudanças tanto no corpo teórico da
Psicanálise como na Educação, entendida como discurso social.
Na atualidade, diversos fatores
são preponderantes na relação da Psicanálise com a Educação: a transferência
que acontece entre aluno e professor, a pulsão do saber, a afetividade, o
acesso ao simbólico e as identificações.[6] Com relação à
transferência, o próprio Freud reconheceu que esse é um fenômeno que se dá ou
se encontra em todas as relações humanas, mas na Educação funciona como uma espécie de exposição do interior do ser humano. É
interessante notar que essa transferência – do aluno em direção ao professor –
pode ser usada pelo educador para melhorar o nível de aprendizado dos seus
educandos. Mas é claro, para que isso venha a acontecer, o primeiro passo é a
identificação da ocorrência desse fenômeno psíquico. Seria interessante treinar
professores a fim de que eles estejam habilitados a fazer essa identificação, bem como realizar a contratransferência.
Como se poder notar, é perfeitamente possível uma relação estreita e colaborativa
entre Educação e Psicanálise. Mas é claro, esse é um exemplo.
No âmbito desta reflexão, deve-se considerar que a fala
é um elemento integrante da comunicação, e a comunicação, por sua vez, é um
elemento fundante da psique humana. Nesse sentido, é correto afirmar que a Psicanálise poderá ser muito útil ao educador e também ao educando visto que ela pode explorar a fala no conjunto da comunicação como uma forma ou
meio de abrir caminhos a fim de tornar acessível o conteúdo.[7]
Ainda na questão da
transferência aluno-professor ou vice-versa, o professor, neste caso, precisa
ter o devido cuidado para não impor ao aluno o seu próprio desejo, sufocando
assim a capacidade do aprendiz de elaborar por si mesmo. Mas se o mestre não
tem desejo nenhum em relação ao aluno, isso também é prejudicial, podendo por
em risco a constituição do educando no processo de ensino-aprendizagem.
No contexto desta abordagem, é importante frisar que a educação aliada à psicanálise pode ter uma
função terapêutica. O grande desafio de cuidar de crianças psicóticas e
autistas pode ser minimizado com recursos oferecidos pela psicanálise. Para que
este trabalho seja desenvolvido de maneira eficaz, é preciso que se tenha
consciência de que ali, na escola, estão seres humanos, e que se explore ou
tire proveito ao máximo dos potenciais terapêuticos no processo educacional.
Para M. C. M. Kupfer (1997), a Educação Terapêutica se apoia em torno de três
eixos: 1. a inclusão social, 2. o eixo simbólico e, 3. a operação educativa propriamente
dita. No primeiro eixo, o da inclusão social, ele inclui vários elementos tais
como a política da inclusão social e a luta antimanicomial. “O segundo eixo
traz a possibilidade de essa criança operar verdadeiramente na dimensão
simbólica, no qual se acentuam as ‘relações estruturais que articulam
sexualidade e conhecimento, sujeito e Eu, significante e palavra’”.[8]
Esses e outros temas perpassam a questão da clínica
psicanalítica na contemporaneidade. Vale considerar também o que tem sido
observado por autores como um avanço e propagação de medicação farmacológica e
a apresentação disso como a única saída terapêutica contra o sofrimento
psíquico das pessoas. No texto O
silêncio do sujeito: medicalização, de Cleide Monteiro, a autora pontua o
seguinte:
[...] a maciça
medicalização que os avanços farmacológicos propagam como única terapêutica
eficaz contra o sofrimento psíquico silencia a angústia, fornecendo um aparente
bem-estar que, por sua vez, passa a ser o ideal de felicidade. Um desafio que a
prática psicanalítica já tem enfrentado e, como pode ser depreendido do artigo
em questão, se refere à necessidade premente de “fazer falar” este sujeito
calado por intervenções químicas. Nesse sentido, a Psicanálise se coloca como
uma possibilidade de afirmação do sujeito, do conflito psíquico que lhe é
inerente e da aposta na manutenção da experiência subjetiva.[9]
Esse espaço para a Psicanálise na clínica atual deve ser encarado como um espaço de escuta do paciente que pode produzir uma melhora significativa em seu quadro médico. Pensar o sujeito psíquico em conexão com o seu corpo é uma saída para vários problemas somáticos, como se reconhece atualmente na medicina.
Um indicador desse
reconhecimento é a maior atuação, embora ainda muito tímida face à demanda, de profissionais
da Psicologia em hospitais e clínicas, além do desenvolvimento de ciências
voltadas à essa área, como a Psico-oncologia. Diante do exposto, vale pensar
também na atualidade da Psicanálise em nosso tempo. Podemos citar como exemplo
de um problema bem atual a anorexia. Em nossa cultura que supervaloriza a
imagem e estabelece determinados padrões estéticos, aquelas e aqueles que não conseguem, por uma razão ou outra, se
enquadrar dentro dos ditames da “ditadura da beleza”, podem ser “atraídos” para
fatores que culminam nos resultados nada atraentes da anorexia. A anorexia é,
na verdade, uma exploração no campo psicológico do narcisismo e do consumismo.
Considerando a atualidade
da Psicanálise, incluem-se discussões sobre a sexualidade nos moldes em que se
propaga hoje, especialmente pela mídia. Se vê uma espécie de consumismo sexual
nas relações sociais.
[...] os
desafios clínicos que a Psicanálise vê diante de si, na contemporaneidade, têm
sua base em uma articulação da banalização da perversão com a hegemonia do
registro econômico sobre o sujeito no mundo atual. Esta ideia está na mesma
direção da análise de Milnitzky sobre as relações de consumo na atualidade, uma
vez que este autor também acredita que “em vez de empregar as forças libidinais
insatisfeitas no trabalho, conforme postula Freud, a nova gramática libidinal
exige que a saciedade erótica se realize no prazer de consumir”. Mas como tudo
isso se dá a ver? Por meio dos fenômenos de compulsão à repetição e de
masoquismo erógeno... como exemplificam as destruições intencionais do corpo e
a existência de uma relação com a lei cada vez mais frouxa, sem qualquer
conotação de transgressão, tão comuns nos dias de hoje.[10]
Os psicanalistas, frente aos
desafios contemporâneos, devem se empenhar em ouvir o sujeito, explorar conceitos
e considerar o que as várias propostas psicanalíticas oferecem, a fim de bem desenvolver,
clínica e teoricamente, os diversos problemas que acometem as pessoas na
Pós-Modernidade (ou na Modernidade Líquida, como diria Bauman). É consenso que a interpretação da cultura é fundamental para
interpretar o indivíduo, pois o indivíduo é parte da cultura. Essa foi a
proposta de Freud, embora essa proposta tenha sido rejeitada por muitos ou ao
menos criticada por cientistas sociais. Uma série de fatores confluentes
são decisivos para justificar o resgate da interpretação psicanalítica no
contexto da cultura com as suas nuances e particularidades.
Referências
[1]
Como o fator religioso, inclusive, numa abertura ao fato de que a religiosidade
praticado pelo indivíduo tem um peso definitivo sobre sua saúde emocional.
[2]
Mais conhecido como Jacques Lacan, foi um dos principais intérpretes de Freud. Desenvolveu uma teoria própria na Psicanálise. Para uma análise da sua reflexão sobre o conceito de "sujeito", cf.: BARROSO, Adriane de Freitas. Sobre a concepção de sujeito em Freud e Lacan. Barbaroi, Santa Cruz do Sul , n. 36, p. 149-159, jun. 2012 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-65782012000100009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 abr. 2023.
[3] FUKS, B. B. Freud
e a cultura. Rio de Janeiro: JZE, 2003.
[4]
VICTOR, Rita Meurer. AGUIAR, Fernando. A clínica psicanalítica na saúde
pública: desafios e possibilidades. Psicol. cienc. prof. vol.31 no. 1 Brasília, 2011.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932011000100005>
Acesso em 19 set. 2019.
[5]
FREUD, Sigmund. apud: RIBEIRO,
Maviane Vieira Machado. NEVES, Marisa Maria Brito da Justa. A educação e a
psicanálise: um encontro possível? Psicol. teor. prat. v. 8 n.2 São
Paulo dez. 2006. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872006000200008>
Acesso em 19 set. 2019.
[6] KUPFER, M. C.
M. apud NEVES, M. M. B. da J.
ALMEIDA, S. F. C. de. Relação professor-aluno: um enfoque sob o ponto de vista
de alguns conceitos psicanalíticos. in: I
Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões – Trata-se uma criança. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 1998 apud
RIBEIRO, Maviane Vieira Machado. NEVES, Marisa Maria Brito da. A educação e a
psicanálise: um encontro possível? Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-36872006000200008&script=sci_arttext>
Acesso em 03 jan. 2014.
[7]
Não estou pressupondo, em hipótese alguma, que todo educador deva ser um
psicanalista, mas sim reconhecendo que o conhecimento especializado em
Psicanálise pode oferecer, de modo muito concreto, contribuições ao trabalho
educativo e que esse diálogo – Educação e Psicanálise – pode oferecer
contribuições mútuas.
[8] NEVES, M. M.
B. da J.; ALMEIDA, S. F. C. de. Relação professor-aluno: um enfoque sob o ponto
de vista de alguns conceitos psicanalíticos. In: I Congresso Internacional de Psicanálise e suas
Conexões – Trata-se uma criança. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
1998 apud RIBEIRO, Maviane Vieira
Machado. NEVES, Marisa Maria Brito da. A educação e a psicanálise: um encontro
possível? Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-36872006000200008&script=sci_arttext>
Acesso em 03 jan. 2014.
[9] MENDONÇA,
Marinella Morgana. Clínica psicanalítica
e atualidade: diversas faces do mal estar. Disponível em:
<http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=261&ori=edicao&id_edicao=37>
Acesso em 13 jan. 2014.
[10] MENDONÇA,
Marinella Morgana. Clínica psicanalítica
e atualidade: diversas faces do mal estar. Disponível em:
<http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=261&ori=edicao&id_edicao=37>
Acesso em 13 jan. 2014.
FONTE: COZZER, Roney Ricardo. Enciclopédia teológica numa perspectiva transdisciplinar. vol. 1. São Paulo: Editora Reflexão, 2020.
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